* Sebastião Abrão Salim
* Didata da Sociedade
Psicanalítica de Minas Gerais
* Didata da
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
* Membro da
Associação Brasileira de Psiquiatria
*Professor Adjunto Aposentado do
Serviço de Saúde Mental da FMUFMG
Endereço
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Costa
Vila Velha Espirito Santo CEP 29101-010
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Tipo do artigo: artigo original
4407 palavras
Resumo
A etiologia do autismo permanece desconhecida. Neste
trabalho, sugiro sua conexão com um evento traumático ocorrido no período
pré-natal, perinatal ou inicial pós-natal e sentido pelo feto ou recém nascido
com sensível sensação de morte.
Este evento ativa duas respostas biológicas filogenéticas
e reflexas. A primeira objetiva
preservar a vida por meio da economia do consumo de oxigênio pela célula para
desempenhar suas funções vitais com auxílio do sulfeto de hidrogênio existente
de forma residual no organismo humano.
A segunda resposta objetiva apaziguar o feto ou o recém-nascido
da ansiedade de morte devido a este evento traumático. Consiste na geração
de sensações corporais produzidas pelos elementos do próprio corpo em contato
com suas superfícies sensoriais.
A sede de ambas é a amígdala cerebral e estão
ligadas a predisposição para o desenvolvimento do autismo.
Esta hipótese é resultado de meus estudos
interdisciplinares entre psicanálise, psiquiatria, psicologia experimental,
neurobiologia e minha prática clínica.
Conforme material clínico apresentado, julgo justificada
a continuação desses estudos.
Palavras-chave: etiologia do autismo; trauma; personalidade autista;
sensação corporal.
Abstract
The autism etiology remains unknown. In this paper, I
suggest its connection with a traumatic event occurred during prenatal,
perinatal or initial postnatal period and felt by the victim with a vivid sense
of death.
This
event triggers two innate and biological response reflex. The first aim to
preserve life through the economy of cell’s oxygen to perform its vital
functions with the assistance of hydrogen sulfite that exists in our organism
in a latent state.
The second response has the objective to appease the
fetus or the newborn death’s anxiety, promoted by this traumatic event. It
consists in the generation of physical sensations produced by the body's own
elements in touch with its sensory surfaces.
Both are existing responses remaining in cerebral
amygdala and answers for the predisposition necessary for autism development.
This
hypothesis results of my interdisciplinary studies between psychoanalysis, psychiatry,
experimental psychology and neurobiology.
As clinical material presented, I consider justified the
continuation of these studies.
Keywords: autism etiology; trauma; autistic personality; corporal
sensation.
Introdução
A etiologia do autismo tem sido objeto de estudo de
varias ciências a fim. Até o momento não foi identificado um marcador biológico
ou um fator psicogênico para a mesma.
Neste trabalho proponho uma hipótese original
vinculada a um evento traumático ocorrido no período pré-natal, perinatal ou
inicial pós-natal e sentido pela vítima com sensível sensação de morte.
Este evento desencadeia duas respostas biológicas filogenéticas
e reflexas.
A primeira objectiva preservar a vida. Consiste1 na economia do consumo de
oxigênio pela célula para realizar suas funções vitais com auxílio do sulfeto
de hidrogênio (H2S) existente em estado latente em nosso
corpo. Segundo os autores esse mecanismo provavelmente é responsável pelo
estado de hibernação de animais e plantas em condições adversas de vida. São
experiências bem sucedisdas, voltadas para prolongar a vida de órgãos humanos
para transplantes.
A segunda resposta tem o objetivo de apaziguar o
feto ou o recém nascido da angústia de morte decorrente do evento
traumático. Consiste na geração de sensações físicas produzidas por
elementos do próprio corpo em contato com suas superfícies sensoriais, como
tocar os lábios ou a pele com os dedos2. Observamos pessoas de todas
as idades apresentando maneirismos como roer as unhas com os dentes até
entidades clínicas como eczemas, enurese noturna, sudorese intensa e outras.
Essas respostas estão armazenadas de modo
filogenético na amígdala cerebral3. Em caso de reincidência
traumática em qualquer período da vida, há uma reativação dessas respostas podendo
haver uma perpetuação das mesmas ao longo da vida do indíviduo.
Considero-as os elementos básicos da predisposição necessária
para o desenvolvimento da personalidade
autista4. Considero essa, fundamento psicopatológico de um amplo
espectro de doenças, como autismo, psicoses, anorexia nervosa e bulímia,
transtorno de estresse pos-traumático, fibromialgias, perversões sexuais,
adição ao ácool ou drogas e outras.
Esta hipótese foi
desenvolvida por meio de meus estudos interdisciplinares entre psicanálise,
psiquiatria, psicologia experimental, neurobiologia e minha prática clínica.
Destaco a importante diferença entre o conceito de
trauma5 biológico relacionado à sobrevivência exposto aqui e o
conceito de Freud6 do trauma, relacionado com a incapacidade do ego
para racionalizar uma demanda sexual, responsável pelas neuroses espontâneas.
Incluo neste trabalho pacientes neuróticos com barreiras
autistas, conforme material
clínico apresentado.
Os meus bons resultados clínicos com estes pacientes
justificam a continuação desses estudos.
Contribuições da psicanálise
Tustin2 dedicou a maior parte de sua
vida ao estudo do autismo e apresentou contribuições de destaque. No
entanto, psicanalistas, psiquiatras e psicólogos, não mencionam apropriadamente
seu trabalho, apesar de sua importância clínica.
Ela nos permite entender a sintomatologia de
autismo ao formular o conceito de "formas autistas" e "objetos
autistas", responsável pelo desenvolvimento de "barreiras
autistas". Descreveu-os em seu livro "Barreiras autistas em pacientes
neuróticos".
Para ela, as primeiras são sensações corporais geradas
por elementos macios do corpo, como fezes aquosas, urina, saliva, muco, comida
na boca e até mesmo vômitos e os segundos são elementos corporais de natureza dura
como dedos, língua, dentes e outros.
Esses objetos e formas podem incluir elementos do
mundo exterior, tais como sons, letras, números, cores e outros. A precisão e o
apego a esses elementos fazem de seus portadores gênios da música, da física, da
matemática, da literatura, da pintura e outros.
Mais atualmente7, sistematizou os
sintomas autistas em três áreas: "competências de sociabilidade, linguagem
e motor. Inclui a área da alteridade e do afeto".
O paciente autista desde o nascimento parece
diferente dos outros bebês, parece não precisar de sua mãe, raramente chora (um
bebê muito comportado), torna-se rígido quando é pego no colo, às vezes muito
reativo aos elementos e irritável. Cresce e vive em um mundo quase sem vida, congelado e
insensível, e sua característica central é uma organização idiossincrática, que
têm notável dotação para atividades que abraçam, mas apresentam considerável
falência na vida pessoal amorosa.
A ultrassonografia
fetal8 confirma as observações de Tustin2, já na vida intrauterina.
Há uma atividade do feto que coça com os dedos a orelha, a pele e os órgãos
sexuais, que certamente não estão a serviço do princípio do prazer e sim do auto
apaziguamento.
Outro psicanalista9,10 acrescentou
estudos importantes , como o conceito de posição autista-contígua e seus
estudos sobre isolamento pessoal.
Ele descreve uma psicopatologia idiossincrática,
derivada do período sensorial autista, por ser o primeiro, quando não existe um
ego capaz de diferenciar o ser do não ser.
É anterior a posição esquizo-paranoide e depressiva11,
as quais estão associadas com a posição autista-contígua de forma dialetica.
Ele considera que as
sensações físicas dão ao feto ou recém-nascido a noção de estar vivo, de quem é
e onde está. Nesse período, há um universo sem palavras, constituido por
sensações físicas, que talvez façam parte do ego corporal, precursor do ego
psíquico12.
Outra psicanalista13 se insere entre os
psicanalistas como uma estudiosa da existência de uma matriz primitiva do
desenvolvimento psíquico.
Contrariando uma grande corrente psicanalítica atual, ela
distingue entre os elementos beta que se transformaram em elementos alfa14.
Conclui: “Faço a conjectura de que existe uma diferença de qualidade entre os
fenômenos autísticos e os elementos beta”.
Meus estudos
levaram-me a concordar com essa postulação. Há de se distinguir um fio
genético normal, que disciplina o desenvolvimento psíquico e cognitivo do
indivíduo, obedecendo a embriogênese e a morfogênese. Tudo tende a correr bem,
incluindo as transformações necessárias. Vai haver o desenvolvimento da
motricidade, do pensamento, do juízo, da orientação no tempo e no espaço, da
linguagem e outros, cada um a seu tempo e sem distúrbio. Caso haja acidentes de
percurso, e aqui estou considerando o trauma fetal ou do parto ou perinatal,
como um trauma físico, infeccioso, tóxico ou de outra natureza, haverá ativação
das respostas citadas.
Esta distinção é importante no trabalho clínico. Os fenômenos
autísticos não são resultado de falha de representação psíquica. São coisas em
si ou dito de outra forma, são apenas concomitantes biológicos.
Não posso deixar de mencionar que a psicanálise, além das
contribuições mencionadas, é importante nesta área do autismo por outras duas
razões.
A primeira porque os pacientes mencionados são mal
interpretados ou mesmo estigmatizados por terceiros e acabam internalizando as
críticas e censuras recebidas. Isto acarreta uma carga a mais para este
paciente que já está debilitado, além de interferir na sua autoestima. Esta ajuda consegue-se pelo método
interpretativo clássico das relações interpessoais e intrapessoais.
A segunda decorre do estabelecimento do setting analítico, que pela sua
constância de horário, de duração da sessão, do mesmo cumprimento de mão ao
receber o paciente e sua fala e seu olhar, comunica uma empatia, elemento
básico no tratamento desses pacientes pela confiança que cria na relação
paciente terapeuta e no restabelecimento dos circuitos neurais entre hipotálamo
e córtex cerebral15.
Contribuições da neurobiologia
Como mencionado as respostas biológicas para
eventos traumáticos com noção de morte, estão armazenadas na amígdala cerebral3
e constituem a memória implícita ou de longa duração ou de trabalho. Ela
se comporta sem a interferência da consciência cognitiva, da mesma forma que o
inconsciente freudiano. Por exemplo, dorma inconsciente, evitamos caminhos
que podem nos levar de volta ao local da ocorrência ou a sua lembrança. Está
presente desde o início da embriogênese e é responsável pelos recursos
biológicos mencionados do feto ou do recem nascido.
Os sintomas gerados por essa matriz inicial tem uma
natureza sensorial e não contêm material reprimido psicológico, portanto não
têm representação psíquica e devemos nos abster de interpretações símbolicas. Para
o trabalho analítico clínico, é importante destacar o diagnóstico diferencial
entre o paciente autista e o paciente neurótico com barreiras autistas do
paciente neurótico para evitar procedimentos iatrogênicos.
Estas considerações demandam atualização das
teorias clássicas da psicopatologia neurótica, esquizoparanoide e depressiva.
Na verdade, considero importante a necessidade de
desenvolver a nova técnica para tratar esses pacientes.
Outras
contribuições
Experiências recentes1 conseguiram
prolongar a vida de órgãos humanos para transplantes, usando uma solução de
sulfeto de hidrogênio (H2S). Fundamentaram este recurso com o
fato comprovado de que o H2S foi responsável pelo fornecimento de
energia para a célula de organismos primitivos no começo da vida na terra,
quando a presença de oxigênio era escassa. Através dos tempos, o oxigênio
tornou-se abundante e passou a ser fonte prioritária para o metabolismo
celular. Contudo, o H2S manteve-se em nosso corpo em estado
residual. Em caso de ameaça à vida, esse mecanismo pode tornar-se ativo,
promovendo economia de oxigênio. Estes autores indicam que o mesmo
processo responde pelo estado de hibernação em animais e plantas.
É importante ressaltar que esse mecanismo prolonga a vida,
mas deixa seu portador destituído parcialmente de suas funções cognitivas. Passa
a ser gerenciado mais pelas estruturas cerebrais do sistema nervoso límbico ou
reptilíneo, fato que explica as ações exageradamente viscerais e violentas de
autistas quando ameaçados. Nos casos graves, podemos dizer que ‘viram bichos’
tamanha a selvageria.
Outra contribuição importante foi dada pelas experiências
com macacos e ratos16,17. Ressaltam a importância psicopatológica do
trauma precoce e seus desdobramentos. Esses autores observaram que esses
animais, se separados de suas matrizes logo após o nascimento e recolocados
após seis meses junto às mesmas, reagiam com respostas de isolamento e desvitalização.
Por outro lado, quando separados após dez dias do nascimento se socializavam
com facilidade ao retornar ao convívio com as matrizes, demonstrando que nesse
período dos dez primeiros dias, após o nascimento, acontecem mudanças
significativas no sistema nervoso central e autônomo desses animais, que são
responsáveis pelas respostas irreversíveis descritas.
Material clínico
Caso A
Maria procurou-me preocupada com seu filho de 15
anos. Ele estava recebendo tratamento psiquiárico e se encontrava muito sedado.
Tinha as mãos envoltas com ataduras por causa de cortes profundos ao jogar-se
contra os vidros da janela.
Este fato foi decorrente da insistencia de seu cuidador
para andar rápido, a fim de acompanhar os outros pacientes da casa para a caminhada
diária dos pacientes da mesma. De imediato, se virou contra ele, o agrediu
fisicamente e então atirou-se contra a janela. Ele fazia e faz uso de vários
tipos de medicação, como acontece hoje em dia.
A mãe relata que até os três anos de idade, seu pai
seguia as recomendações do médico assistente para aplicar-lhe corretivos
físicos devido sua insubordinação, até que se convenceu de que o filho estava
doente. Era julgado surdo devido à insuficiente falta de respostas para os
comandos de terceiros.
Havia se tratado com inúmeros
psiquiatras e psicólogos com piora gradativa de sua condição pessoal. Perguntado
sobre o parto, Maria disse que foi traumático para ela e para o filho. Disse
que seu filho tem vários maneirismos como morder as unhas com os dentes, urinar
na cama todas as noites, se alimentar pouco por falta de fome e baixa
imunidade.
Eu disse-lhe que era dificil tratá-lo, neste
momento, pela psicoterapia em meu consultório, devido sua violência.
Trata-se de um caso típico de autismo com prognóstico
grave.
Caso B
S é uma menina de seis anos, personagem do filme de
"The house of cards". O filme começa mostrando o caule de uma
árvore antiga. Logo, surgem vários répteis andando em volta. Um
começo indicativo do que venho sustentando, isto é, o autismo tem raizes
antigas.
Ela testemunhou com seu irmão e a mãe, a morte do pai
ao cair de uma alta ruína de pedras, quando fazia estudos antropológicos em
cidade mexicana.
Ao voltar para casa
nos Estados Unidos, ela não se lembrou da mesma. Quando começou as aulas, ficava
isolada dos colegas. No primeiro dia subiu em uma árvore, exibindo grande
habilidade para se equilibrar.
O psiquiatra da
escola foi notificado do seu comportamento. Fez o diagnostico de autismo e
dirigiu-se à sua casa para conversar com a mãe. Ao chegar, viu que S estava no
telhado da casa, próximo a calha, onde caíra a bola atirada por seu irmão e que
todos temiam por ela. A mãe preocupada tentou aproximar-se pela janela do
sótão e quando S a viu, começou a gritar de modo desesperado e contínuo. Todos
ficaram com medo, porque não compreendiam o motivo de seus gritos e temiam que
ela caísse. O psiquiatra pediu aos presentes
para informar se percebiam algo diferente no ambiente e seu irmão observou, que
a mãe estava usando o boné com a aba
para trás. Ao repô-lo na posição correcta, indicada pelo psiquiatra, S parou
de gritar.
Nessa cena, o cineasta exibi o olhar fixo dela na costura
dos gomos da bola. Descrevi15 vários procedimentos sintomáticos
de pessoas com o fim de apaziguamento da angústia da morte ou de loucura, como falar
ou olhar continuamente, a manipulação obsessiva de celular e outros.
Em outra cena, seu irmão entra no quarto dela, onde
havia se isolado. Inadvertidamente, ele bateu em um cubo colocado entre
outros dois existentes sobre uma bancada. Esse cai e ela começa a gritar,
como havia feito antes na calha do telhado. Seu irmão angustiado, sem saber
como a serenar, coloca de forma intuitiva, o cubo em pé na posição anterior e S
se silencia.
Depois S é filmada criando uma pirâmide com as cartas de um baralho, que
dá o nome ao filme, realçando mais uma vez sua habilidade para o equilíbrio.
Eu explico suas reações e a destresa para o
equilíbrio, como demonstração da existência de um estado psicológico frágil,
tomado pelo medo da loucura e da morte. Manter tudo organizado é
importante para dissipar o medo da morte iminente, acentuado pela morte do pai
por uma queda. Essa particularidade de S, presente no paciente autista, alerta
para a necessidade da delicadeza e do ajuste necessário do terapeuta para
formular a interpretação, certificando-se de que ela é empatica com o paciente.
Prosseguindo, o psiquiatra atribui ao seu
autismo uma natureza neurológica. Inicia uma terapia comportamental com S
e fica impaciente na ausência de resposta dela aos seus comandos. Por sua vez, ela
fica brava e agressiva com ele. A mãe discorda dele. Entende que está
assim pelo trauma da perda do pai e necessita da empatia de terceiros.
Com sua habilidade de projetista inicia a construção do projeto de uma espiral com placas de metal,
semelhante ao de S com as cartas de baralho. Quando finalizado, S responde com
com empatia e saí do estado de desconexão15.
Eu entendo essa espiral ascendente como a
representação materializada do desejo de alcançar o pai no céu e seu contínuo
esforço para deixar a posição autista, onde ela se refugiou depois de sua
morte.
Pode-se perguntar porque S desenvolveu o quadro
autista e seu irmão não. A resposta está certamente no fato de que S apresentava
predisposição para se tornar autista. Também pode-se questionar se seu quadro
clínico não é uma reação dissociativa. Discordo porque seus traços são bem autísticos
e de longa duração.
Caso C
R estava com 30 anos de idade. Relatou que
ouvia vozes que o ameaçavam ou o subestimavam. Achava que era a voz de um
espírito, ordenado pelo pai da ex-noiva, como retaliação pelo término do
noivado com sua filha. Desde então, trancou-se no seu quarto.
Fiz o diagnóstico de esquizofrenia paranóide e logo
depois, recomendei seu afastamento do trabalho e depois sua aposentadoria.
Iniciamos o tratamento psicoterápico com duas
sessões semanais e uso de olanzapina e bromazepan.
Após dois anos de tratamento, ele aceitou minha interpretação
de que as vozes eram provenientes de seu interior, fato que mudou o curso da
psicoterapia. Passou a deixar o quarto para fazer refeições com os pais na sala
do apartamento.
Ainda hoje, ouve expressões ou palavras que surgem
inesperadamente, com conteúdo persecutório e de humilhação, como no principio,
mas de forma mais espaçada e atenuada em intensidade. Repele às mesmas, dizendo
que não tem relação com sua pessoa, pois se julga correto e bom.
Ninguém tem acesso ao seu quarto. Ele faz a
limpeza do mesmo com material próprio (vassoura, rodo, e outros), abstendo-se
de usar material usado por sua mãe para limpeza do apartamento. O mesmo está
cheio de objetos que traz da rua e está com pouco espaço para caminhar no seu
interior.
Esse quarto funciona como sua segunda pele19,20,
relacionada com a sensação de que tudo que juntou de cognição pode vazar.
R Nunca perde as sessões comigo. Vem dirigindo
seu carro e estaciona-o sempre do mesmo lado da rua, forçando-o alguns dias a
dar voltas no quarteirão. Senti-me incomodado com essa dificuldade,
responsável por alguns atrasos na hora do início da sessão. Uma vez sugeri que colocasse
o carro no estacionamento ao lado do meu consultório. Ele ficou com raiva de
mim, indicando que não devia interferir nesta questão. Da mesma forma, se
o elevador não está vazio, ele não entra. R somente não segue esse
principio, quando percebe que pode atrasar-se para a sessão. O mesmo nã
acontece com o fato de estacionar o carro. Gaba-se do fato de dirigir há 14
anos nunca ter sido multado, tamanha sua obediência as leis do trânsito.
Incumbe-se de fazer sua gestão pessoal de receita e despesas. Faz o pagamento das sessões seguindo suas anotações,
sempre sem erro.
No início do tratamento, era difícil ajudá-lo devido
sua lentidão. Sua fala causava-me tédio e era enigmática, com conteúdo
segmentado e confuso, difícil de entender. Era repetitivo e tinha
modulação lenta, o que causava-me sonolência, às vezes difícil de disfarçar.
Com auxílio dos meus estudos, pude entendê-lo e
respeita-lo. Passei a compreender seus medos e sua insuficiência. Ele teve
surpreendente recuperação clínica com minha empatia. Observei, que quando
eu interferia em seu discurso, usando um termo sem manter o mesmo sentido, R
reagia com desagrado. Aprendi com ele, que era melhor deixá-lo sem
interferir em sua tentativa de compreender as vozes, agora atenuadas. Cada
palavra, ainda hoje, deve ter significado preciso. Portanto, eu opto por
ficar sem entender o seu discurso, sem me sentir exausto, insuficiente e com
sono, e isso me deixa ficar mais integrado durante a sessão.
Bastante significativo é a forma positiva, como
hoje, ele reagi às vozes, que o mandam afastar-se de mim e do tratamento. Eu relaciono
com sua melhora e o sentimento de confiança fundado na regularidade do setting terapêutico, constituido por
meio da minha presença, cumprimento de mão, fala e olhar. Observo a tempo, que jamais esquece uma fala minha.
Em algumas sessões, relata a presença de cheiros e
sons dentro e fora do escritório, um fato que eu entendo como sensações, ativadas
para sentir-se mais coeso.
Este caso mostra bem a dialética entre a posição
autista e a esquizoparanóide. No seu tratamento, o considero esquizoparanóide
em um momento e autista em outro.
Caso D
L tinha 14 anos quando foi internada, porque
agrediu a mãe, fugiu de casa, colocou fogo em objetos domésticos, cortou-se com
objetos cortantes, movia o corpo para frente e para trás, batia a cabeça contra
a parede e tentou auto extermínio com drogas psicotrópicas. Essas ações
violentas alternavam com períodos de apatia, sonolência e sintomas de anorexia nervosa.
Sua mãe pediu para atendê-la. Fui
ao hospital e descobri que L não tinha comprometimento cognitivo psicótico, era
magra, fazia movimentos rítmicos contínuos para enrolar o cabelo com os dedos e
movia o corpo e as pernas de forma contínua.
Informou-me que a mãe a maltratava desde a
infância, quando jurou para si mesma, que vingaria os abusos físicos recebidos.
Encontrei na sua papeleta médica o diagnóstico de
esquizofrenia ou transtorno bipolar. Os psiquiatras não conseguiam determinar
o diagnóstico e a aprescrição de drogas era sempre modificada. Após alguns
encontros, estabeleci uma relação de confiança básica de L comigo, ela melhorou
e foi para casa.
As primeiras sessões em meu consultório eram
difíceis, como eu esperava. Ela insistia na presença da mãe dentro do
consultório para me convencer que essa não a entendia. Com fina
sensibilidade, forçava a mãe a dizer na minha frente, como a mesma estava se
sentindo. Nessas ocasiões, diante de qualquer tropeço, L me dizia que sua
mãe nunca a tinha entendido ou chorado por ela.
Em uma sessão sozinha comigo, L ficou violenta comigo,
porque percebeu que eu não estava prestando atenção no que falava. Ela tentou
me agarrar pelo pescoço. Eu a contive e disse-lhe que na verdade tinha
distanciado dela, como observou. Esta confissão a acalmou, dando-lhe lucidez. Depois disso, tornou-se mais
dócil comigo, mas ficou deitada no divã, com as almofadas em seus braços,
contato que gerava uma forma autista de apaziguamento e assim permaneceu toda a
sessão.
Comecei a acreditar mais que sua psicopatologia era
autista.
De outra vez, ela foi até o banheiro do consultório
e fechou a porta. Anteriormente, eu ficaria preocupado com sua estadia lá.
Agora entendia como um desejo de estar sozinha, provavelmente causada por um
olhar ou fala minha assintonica com ela. Em uma dessas ocasiões, ela disse
de um desejo irresistível de ficar na cama o dia todo e descreveu sonhos em que
não tinha força para mover os braços e pernas. Esses eram indicativos de
sua tendência à imobilidade autista.
Em sessão posterior, ela começou a sentir dor
abdominal, enquanto no divã, que foi acentuando e ela desmaiou. Esse fato acontecia
fora do consultório com freqüência e a família entendia como atuações para
impressionar. Entendi esses desmaios como um apagão15. Essa
compreensão ajudou-me a manter-me quieto, calado, segurando suas mãos e
dando-lhe tempo para se recuperar.
Certo dia, L fez o relato de enurese noturna e
sudorese intensa, elementos corporais de natureza macia, como produtores de
sensações na pele, tais como as almofadas no divã. Mencionou,ainda, a
existencia de alucinações auditivas nas quais as pessoas iam atrás dela. Eu
interpretei para ela, que seu estado de imobilidade e desamparo, levavam-na a
querer ser encontrada.
Depois de quatro meses, L começou a mostrar sinais
de estabilidade e confiança em mim e na sua capacidade de compreender. Ela
passou a mostrar cultura brilhante para sua idade cronológica. Ela sabia
mitologia egípcia, mitologia grega e tinha conhecimentos da língua inglesa.
Dois anos mais tarde, ela foi capaz de retornar à
vida social e aos estudos.
Considero-a uma paciente neurótica com barreiras
autistas e eventuais surtos psicóticos.
Conclusão
Na natureza tudo tende a ir bem, incluindo as
alterações necessárias, como desenvolvimento de habilidades motoras,
pensamento, julgamento, orientação no tempo e espaço, linguagem e outros, cada
um em seu próprio tempo e sem perturbação, dentro de uma programação
filogenética.
Se ocorrem eventos traumáticos infecciosos,
tóxicos, medicamentosos e outros no período fetal, perinatal ou posnatal,
haverá ativação de respostas biológicas filognéticas para preservar a vida e promover
o auto apaziguamento.
Essas respostas, paradoxalmente, preservam a vida,
mas ocasionam um desenvolvimento biológico lento, como observação de alguns
bebês que já nascem com traços autistas21. São mais lentos,
dormem mais, apresentam dificuldades para pegar o mamilo do peito da mãe e são
mais sensíveis a estímulos externos, como claridade, sons e outros.
Sintomas autistas são poucos identificados no
recém-nascido por pais e especialistas. Tal desconhecimento promove
dificuldades para seus cuidadores, geralmente as mães, que termina em fracasso
em realizar os processos de maturação22. Esse fato é desastroso
para esses bebês, porque o cuidador externo é fundamental para tornar possível
uma reorganização dos circuitos neurais15, como mencionado.
Espero ter fornecido elementos bastantes para
sugerir que a hipotese traumatica para a
etiologia do autismo deva ser objeto de estudo.
Como mostrado, associa-se ao autismo uma
psicopatologia para ser tratada pela psicoterapia psicanalítica com trabalho
interpretativo adequado.
Já as manifestações autisticas, por não portarem
elementos reprimidos, requerem empatia e um setting
constante15.
É muito importante que o terapeuta tem uma mente
durante todo o processo terapêutico que o paciente autista sente-se na beira de
um precípicio entre a vida e a morte e entre a loucura e a normalidade. Esta
é a razão de respeitar seus maneirismos e idiossincrasias.
Há relatos23 de seus pequenos pacientes
de sonhos com água, os animais reptilianos, todos os elementos primitivos de
nossos filogenese relacionados com o início da vida na terra, demonstrando as
raízes primitivas do autismo.
Considero estes estudos inacabados, havendo uma
discussão continua e interdisciplinar entre os psiquiatras, psicanalistas e
neurobiologos a fim de compreender os complexos sintomas autistas e para tratar
esses pacientes.
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