segunda-feira, 30 de novembro de 2015


A saga de um ideal: a história da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais
                                                                      

                                                                                   *Sebastião Abrão Salim



                     Dedicatória

                    Dedico este trabalho ao Dr. José Pedro Salomão, devido à sua importância pessoal para mim e, indiretamente, para a constituição da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais.





















*Fundador e Membro Honorário da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais
*Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais


Resumo
            A maioria das instituições psicanalíticas, ligadas à Associação Internacional de Psicanálise, foram obras de pioneiros, aos quais se juntaram outros para escrever histórias ímpares. Com a Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais não foi diferente. 
Embora Belo Horizonte, a nova capital de Minas Gerais, fundada no final de século 19, estivesse destinada a tornar-se rica em todas as áreas do conhecimento humano, devido à herança de audazes idealistas e intelectuais mineiros, nossa sociedade só foi oficializada em 2015, após 22 anos de incessante trabalho. 
Desde 1963, quando me formei pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais até 1993, trabalhei de forma incessante, despojada e isolada, para a oficialização do Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte, instituição ligada a Associação Internacional de Psicanálise. 
Em setembro de 2008, 15 anos depois, o Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte foi reconhecido pela Associação Internacional de Psicanálise, como Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais e em julho de 2015, 7 anos depois, reconhecida como Sociedade Psicanalítica Provisória de Minas Gerais, podendo agora funcionar de forma mais autônoma na formação de psicanalistas mineiros. 
Neste trabalho, descrevo passo a passo as pessoas e os fatos importantes neste processo ao longo deste caminho percorrido.




 Histórico        
            As instituições psicanalíticas ligadas à Associação Internacional de Psicanálise (International Psychoanalytical Association – IPA)  têm histórias singulares, porém possuem um elemento comum: a oficialização de todas deve-se ao empenho de algum pioneiro, ao qual vêm se juntar outros. 
A história da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais não é diferente. Como seu obreiro e testemunha, vou procurar fazer o relato desde os primórdios da Psicanálise em nosso estado. 
Belo Horizonte tornou-se capital de Minas Gerais no final do século 19 em substituição a Ouro Preto, cidade de importância nacional e internacional pela sua história no movimento brasileiro pela independência de Portugal ─ liderado por idealistas e poetas que participaram da Inconfidência Mineira ─ e por sua arquitetura barroca preservada. 
A nova capital recebeu essa influência. Foi planejada com cuidado e arte quanto às ruas, avenidas, praças e parques, tudo dentro de uma previsão de crescimento. 
Olavo Bilac visitou-a na época, descrevendo-a como um lugar onde havia duzentas casas, clima bom por causa das montanhas vizinhas, terra boa para plantação de frutas e propícia para ser projetada devido ao traçado das cinco ruas existentes. 
O crescimento foi singular. No seu centenário em 1997, já era a terceira cidade brasileira em população e seu traçado ultrapassou os limites originais. Em todas as áreas de atividade, despontaram nomes ilustres dentro do cenário nacional artístico, intelectual, científico, político e econômico. 
Em 1944, época da oficialização pela IPA da primeira sociedade psicanalítica do Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Belo Horizonte contava com estrutura universitária qualificada: Faculdade de Medicina, Farmácia, Odontologia, Engenharia, Arquitetura e  Direito. Nessas instituições, modelos de ensino superior, formaram-se inúmeros mineiros de destaque nacional e internacional. A cidade possuía vida artística, cultural e científica ativa, comparada com outras capitais brasileiras, apesar dos 47 anos de existência. Havia uma imprensa dinâmica, com matérias sobre assuntos diversos, inclusive Psicanálise. 
Em busca de elementos para verificar o que havia aqui nesta época no âmbito relacionado à ciência de Freud, procurei o Dr. Leão Cabernite devido ao fato de ele ter residido aqui nessa época e militar na área da Psiquiatria com interesse na Psicanálise. 
Escreveu-me ele: “Em 1944 eu publicava artigos de Psicanálise na Folha de Minas, jornal onde trabalhava enquanto aluno da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Eu redigia e publicava colunas semanais sobre o assunto no citado jornal. Ainda em 1945, no terceiro ano do curso (formei-me em 1948), decidi estudar alemão. Para tanto, procurei Karl Weissmann. No intervalo das aulas, ele tocava no violino o minueto de Boccherini e discutíamos Psicanálise. Era uma matéria nova, inteiramente desconhecida do público e da maioria dos intelectuais. No entanto, já se falava em ‘complexo’ e outras palavras do jargão psicanalítico. Weissmann havia publicado, alguns meses antes, o livro com enfoque psicanalítico O dinheiro na vida erótica. Ele enviou para Freud um exemplar e este lhe enviou uma carta de agradecimento, carta essa que consta da biografia escrita por Ernest Jones sobre a vida e a obra de Freud. Weissmann a exibia triunfalmente para todos. O livro é um amontoado de fantasias do autor, somadas aos enunciados teóricos de Freud.  Foram estes os meus primeiros contatos com a Psicanálise e as ideias do seu criador. Em 1949 Weissmann dava cursos de hipnose para dentistas e correspondia com Werner Kemper, psicanalista alemão didata da IPA, que estabeleceu moradia no Rio, convidado por médicos daquela cidade para organizar e formar uma Associação de Psicanálise.  Nesta época, eu havia me formado e mudado para o Rio, onde morei até 1950, fazendo estágio em Neurocirurgia, Psiquiatria e atendendo em ‘Psicanálise’. Era um estágio, onde eu pesquisava desde Neuroanatomia patológica até indicações e resultados da lobotomia de Muniz. Em Psicanálise, eu tinha poucos, mas ‘cooperadores’ clientes. Após o estágio, voltei para Belo Horizonte, continuei no exercício da Psicanálise. Nesta ocasião, o Dr. Paulo Dias Correia, cunhado de Weissmann, também a praticava. Isto aconteceu até 1954.  Em fevereiro desse ano, o Dr. Werner Kemper, então Presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, decidiu fazer um passeio a Carinhanha, na Bahia, saindo, em barco, de Pirapora. O trajeto era Rio–Belo Horizonte–Pirapora–Bahia–Rio. Na época, Weissmann já era ‘'psicanalista’ da Penitenciária de Neves. Quando o Dr. Kemper passou por Belo Horizonte, Weissmann pediu-me que o recebesse em minha casa. Nesse encontro mencionei ao Dr. Kemper meu desejo de fazer formação psicanalítica e ele me disse que o Dr. Paulo Dias Corrêa havia feito o mesmo pedido. Ele só dispunha de uma vaga e precisava tempo para optar. No dia seguinte fez sua opção pela minha pessoa. O Dr. Paulo Dias não desanimou e mudou-se para São Paulo, onde fez sua formação. Eu comecei a minha no Rio no mês seguinte, indo semanalmente lá para a análise didática e para a formação teórica, até que em março de 1957, mudei-me definitivamente. Terminei-a em dezembro de 1959. O Dr. Helio Pellegrino veio depois e começou sua análise com Iracy Doyle”.   
Nesse relato, eu destacaria os seguintes pontos:
1) Por intermédio de Karl Weissmann, Belo Horizonte, na década de 1940, passa a ser conhecida de Freud. Há correspondência maior de Freud com outro brasileiro, o Dr. Durval Marcondes, de São Paulo (1928);
2) O Dr. Cabernite, ainda em formação, entre 1954 e 1957, foi o primeiro a realizar aqui um trabalho psicanalítico mais próximo do referencial técnico e teórico da Psicanálise da IPA;
3) Há uma segunda fonte de informação proporcionada pelo Dr. Joaquim Afonso Moretzsohn no livro A história da Psiquiatria Mineira, que menciona o Dr. José Pedro Salomão como único psicanalista de Belo Horizonte, naqueles idos de 1957. Há uma lacuna nesse livro do Dr. Moretzsohn relacionada à omissão do trabalho anterior do Dr. Cabernite. 
Muito antes, em 1951, o Dr. José Pedro Salomão iniciou análise com o Dr. Cabernite, informado por outro colega, que lhe falou dele e de seus artigos na Folha de Minas. Em 1957, quando  o Dr. Cabernite foi para o Rio em definitivo, o Dr. Salomão, ainda seu analisando, era o único profissional médico que passou a praticar aqui um trabalho psicanalítico com referencial IPA. 
Ele era meu tio e o interesse pela Psicanálise foi-me despertado pelas longas conversas que mantínhamos. Por coincidência, meus estudos médicos começaram em 1957 e os terminei em 1963. 
                  Em 1962, recebo uma solicitação do Dr. Cabernite para assessorar o Dr. Maxwell Gitelson, então presidente da IPA, que desejava conhecer Ouro Preto, a Dra. Helena Antipoff e pronunciar uma palestra no Instituto de ensino Brasil-Estados Unidos. O Dr. Cabernite sabia pelo Dr. Salomão que eu falava inglês e estudava Medicina. Passei dois dias com o Dr. Maxwell e sua esposa, proporcionando o que ele desejava, acompanhado do Dr. Salomão. Foi uma experiência pessoal rica. Ouvi o Dr. Maxwell discorrer sobre o funcionamento dos mecanismos de projeção e de identificação projetiva descritos por Klein, que eram considerados como desenvolvimentos recentes da Psicanálise. 
            Este acontecimento teve a singularidade de reforçar meu interesse pela Psicanálise e originou o ideal de dotar Belo Horizonte de uma entidade com as referências da formação da IPA, devido à excelência do trabalho teórico e clínico apresentado pelo Dr. Gitelson. Eu, naquela época, já sabia desses referenciais pelo convívio com meu tio. 
Após minha formatura em dezembro de 1963, continuei na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FMUFMG) na cadeira de Psiquiatria, como estagiário da mesma, sob a orientação do Dr. Hélio Durães Alkmim, que a havia assumido recentemente. 
O Dr. Helio Alkmim trabalhava com conceitos psicanalíticos, devido à sua formação psiquiátrica nos Estados Unidos, onde fez análise pessoal e trabalhou em clínica de orientação psicanalítica. Mas, na verdade, quem continuava mais próximo da teoria da prática psicanalítica aqui era o Dr. Salomão. Houve um momento em que o Dr. Cabernite lhe disse que estava com tempo de análise pessoal para ingressar no Instituto de Formação da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, da qual o Dr. Leão já era psicanalista didata. No entanto, para fazer a formação completa, teria que se mudar para o Rio e problemas familiares o impediram. 
De 1963 até 1993, todos os fatos ocorridos para a oficialização do primeiro passo para o reconhecimento da SPMG, que era a constituição do Núcleo Psicanalítico, foram de minha iniciativa e estão ligados à minha iniciativa pessoal, quase sempre isolada. Foi longa – 30 anos –, por vezes difícil e penosa, despojada de valores materiais, percorrida com a compreensão e incentivo próximo, constante e afetuoso de minha mulher, de modo especial, dos filhos e de alguns colegas, que irei mencionando no andamento desta narrativa. 
                  No ano de 1964, marquei um horário com o Dr. Werner Kemper no Rio de Janeiro para tentar iniciar minha formação psicanalítica. Nesse encontro, disse-me ele, que eu devia aguardar vaga para a formação e recomendou que iniciasse análise pessoal com outro analista, enquanto isto. Comecei-a, ficando no Rio de Janeiro por cinco dias seguidos cada mês, quando fazia duas sessões diárias com o Dr. Walter Antunes. Eram as análises ainda hoje chamadas de intermitentes. 
                  No encontro com o Dr. Kemper, comento com ele o início de um movimento aqui em Belo Horizonte, que se denominava psicanalítico, dirigido pelo Padre Malomar Edelweiss, vindo da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Eu e mais alguns colegas fomos convidados para nos analisar com ele. O Dr. Kemper disse-me que o conhecia. Estava ligado ao Círculo Vienense de Psicologia Profunda, criado por Igor Caruso. Conhecia  alguns trabalhos desse autor e informou-me que os parâmetros de formação eram diferentes daqueles da IPA, mas não fez referências à formação profissional. Diante da informação, recusei o convite, talvez em vista da minha história pessoal, até aquele momento envolvida com colegas da IPA. 
                  Acompanhei, desde o início, o desenvolvimento do Círculo, admirado com a velocidade com que era implantado. Essa, porém, é uma história que não sei relatar. Afinal, não me filiei a ele, embora tivesse e continue tendo caros amigos pertencentes ao seu quadro societário. 
                  Mantive-me no meu isolamento. Sustentavam-me duas frases de Freud, que foram esplêndidas e fundamentais durante esse período e nos anos seguintes, até 1993. Quando Freud se viu em meio a controvérsias e dissenções, no início de suas publicações, disse: “O homem é forte enquanto defende uma ideia forte”. A outra é: “Quem sabe esperar não necessita fazer concessões”. 
                  Nesse ano de 1964, faço a primeira tentativa de criar um Núcleo. Ponho em contato pessoal o Dr. Hélio Alkmim, como relatei professor titular da cadeira de Psiquiatria da FMUFMG, também interessado, com o Dr. Paulo Dias Corrêa, a esta altura morando no Rio e com cargo na Diretoria da Associação Brasileira de Psicanálise (ABP). Ele permanecia ligado a Belo Horizonte devido à sua tradição familiar. Por duas vezes, fez conferências na FMUFMG, uma por convite meu e outra por convite de seu irmão (professor da mesma), ambas concorridas. Em outra ocasião, ele passava alguns dias de férias aqui, uma das quais coincidiu com a data na qual o Padre Malomar ia fazer uma palestra sobre Psicanálise na Associação Médica de Minas Gerais. Fez-se presente, como eu, e, após a palestra, houve um atritado debate entre os dois, no qual contestou, com a veemência que lhe era própria, afirmações conceituais e de formação psicanalítica ditas pelo Dr. Malomar. Hoje, considero que foi um desgaste desnecessário, porque os colegas de Belo Horizonte demandavam uma formação psicanalítica, e a escola de Psicologia Profunda satisfazia a essa necessidade. A Psicanálise sempre teve algo de religioso. Não havia o que questionar. 
                  O Dr. Paulo e o Dr. Hélio Alkmim esboçaram um projeto inicial. O Dr. Paulo retornaria a Belo Horizonte como professor de Psiquiatria da FMUFMG e iniciaria a análise pessoal de cinco colegas já escolhidos, incluindo-me. Tudo corria bem, até que houve um mal entendido: o Dr. Hélio se aborreceu e o projeto se desfez. Foi uma primeira tentativa fracassada. 
                  Esse grupo de colegas não desanimou. Dirigimos-nos ao Rio para conversar com ele. Fomos recebidos pelo Dr. Paulo, que nos encaminhou ao Dr. Cabernite, então pessoa representativa da Psicanálise brasileira. Esse nos acolheu e prontificou-se a nos apoiar. Alertou-nos, contudo, que devido à grande demanda na época por psicanalistas didatas no Brasil, nada poderia ser feito em curto espaço de tempo. De fato, nos anos de 1965, 1966 e 1967, não ocorreram fatos adicionais.   
                  Em 1968, volto a me encontrar com o Dr. Paulo Dias para conversarmos sobre um sobrinho seu, em tratamento comigo. Falamos de novo sobre o projeto do Núcleo. Ele me pede para formalizar em carta um pedido meu à ABP. Assim, eu fiz.
                  Em 8 de março deste ano, eu e alguns colegas da Faculdade enviamos uma carta ao Dr. Mário Martins, psicanalista gaúcho, devido à sua influência na Psicanálise do Rio Grande do Sul, forte reduto da especialidade e de estreitas relações com Argentina e Uruguai. A resposta foi a mesma de antes: havia dificuldade em encontrar psicanalistas didatas disponíveis no Brasil. Orientou-nos para entrar em contato com o Dr. Paulo Grimaldi, colega do Rio, que estava terminando sua formação em Buenos Aires e pensava em retornar ao Brasil. Fizemos contato com ele, mas sua resposta foi negativa, porque havia assumido compromissos no Rio. 
                  Ainda em 1968, fui ao Rio de Janeiro participar da II Jornada Brasileira de Psicanálise. Foi uma situação constrangedora. A participação no evento era fechada para membros e candidatos da ABP. Apresentei-me ao Dr. Cabernite, que ficou embaraçado, mas conseguiu permissão da comissão organizadora para que eu pudesse participar. 
Neste mesmo ano, seguindo recomendações do Dr. Paulo Grimaldi, entro em contato com o Dr. Jorge Mon, Presidente da Associação Psicanalítica Argentina, convidando um psicanalista didata argentino para radicar-se aqui. Lá havia muito mais analistas didatas do que no Brasil. Procurei o Dr. Paulo Neves de Carvalho, pessoa conhecida minha, então Secretário de Educação do Estado de Minas Gerais, para pedir-lhe uma participação direta e do Dr. José de Magalhães Pinto, Ministro da Justiça na época. Consegui que houvesse uma correspondência do Dr. Magalhães Pinto com o Dr. Jorge Mon, mas tudo sem êxito. 
                  Naquele ano, aconteceu um fato importante. Com participação de alguns colegas, constituímos a Sociedade Mineira de Psicoterapia Analítica de Grupo (SMPG), tendo como Presidente o Dr. Bernardo Blay Neto e eu como o primeiro secretário. O Dr. Blay Neto, psicanalista de São Paulo, era membro importante da Associação Brasileira de Psicoterapia de Grupo com formação psicanalítica em São Paulo. Havia encontros mensais, quando aconteciam sessões de análise pessoal em grupo, seguida de curso teórico para formação de terapeutas de grupo. Éramos dez colegas entre médicos e psicológos. Encerrei minha análise no Rio, a qual fazia desde 1964, para aderir a esse grupo. Durante dois anos, o Dr. Blay veio mensalmente a Belo Horizonte. Quando finalizou seu trabalho, eu e alguns colegas continuamos em análise e supervisão com ele, indo a São Paulo, porém agora de forma individual. Para mim, foi uma inesquecível experiência pessoal e profissional.
                  No início de 1970, convido o Dr. Walderedo Ismael de Oliveira, influente psicanalista do Rio, convidado oficial do I Congresso Mineiro de Psiquiatria, para realizar uma jornada da SMPG durante o mesmo. Infelizmente, não conseguimos efetivar o evento. 
                  Nesta época, eu era o Coordenador da Disciplina de Psiquiatria da FMUFMG e promovi vários encontros científicos, trazendo a Belo Horizonte psicanalistas relevantes do cenário brasileiro, tentando sensibilizá-los para auxiliar na fundação do Núcleo e mobilizar interessados daqui para participar do movimento. 
                  Tentei, ainda, sensibilizar o Reitor da UFMG para contratar um psicanalista didata com o fim de dinamizar a Disciplina de Psiquiatria da FMUFMG. Houve correspondência direta entre a Reitoria, a ABP e a Dra. Virgínia Bicudo, então Diretora do Instituto de Ensino de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise e São Paulo (SBPSP). Novamente estes contatos não deram em nada.
                  Em 1972, surge uma oportunidade concreta. Tenho contatos com o Dr. Hernan Davanzo, psicanalista didata da Sociedade Psicanalítica do Chile, que trabalhava em Ribeirão Preto, São Paulo, onde morava com a mulher e duas filhas. Veio para o Brasil devido ao governo de Salvador Allende no Chile, ao qual se opunha. O Dr. Davanzo era membro ativo da Organização Pan-Americana de Saúde, que mantinha um programa denominado Laboratório de Relações Humanas para Faculdades de Medicina. O objetivo deste trabalho era despertar os participantes para ação de elementos subjetivos nas decisões administrativas, ações dos docentes e da cúpula universitária. O Laboratório durava 15 dias, em tempo integral, com a participação de 30 docentes. Consegui viabilizar a realização do mesmo com grande repercussão na comunidade universitária docente. Esse Laboratório foi exitoso pela competência do Dr. Davanzo e projetou o Departamento de Psiquiatria e Neurologia da FMUFMG, do qual eu era chefe na época, no âmbito da Faculdade e da Reitoria. Cogitei e consegui, em tempo recorde, a contratação do Dr. Davanzo pela Reitoria da UFMG e a concordância da Diretoria da SBPSP aceitasse a filiação do Núcleo por meio da Dra. Virginia Bicudo. Seis colegas interessaram-se pela formação analítica. Quando tudo parecia acertado, ocorreu o golpe militar no Chile pelo General Pinochet, e o governo chileno empenhou-se em trazer de volta seus filhos profissionais para reerguerem o país. O patriotismo falou mais alto no coração do Dr. Davanzo e perdemos a possibilidade mais concreta que tivemos até então. 
                  Em 1972/1973, e mesmo antes, eu era procurado por recém formados da minha faculdade, em busca de orientação para residência de Psiquiatria e para formação psicanalítica, pelo meu cargo de professor na Faculdade. Encaminhei vários candidatos para o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Muitos tornaram-se psicanalistas e, hoje, são membros destacados da Psicanálise brasileira.
                  Comecei a me convencer de que também deveria buscar minha formação psicanalítica. Ainda em análise com o Dr. Blay Neto em São Paulo, procurei a Dra. Virgínia Bicudo, Diretora do Instituto de Ensino da Psicanálise da SBPSP, e ela me falou de seu trabalho em Brasília, aonde ia nos finais de semana para análise de candidatos, dizendo que eu poderia fazer minha formação por lá. 
                  Depois de aprovado nos testes de seleção, comecei minha análise didática com ela em agosto de 1975, indo semanalmente a Brasília nos fins de semana, mas não deixei de continuar meus contatos com outros psicanalistas brasileiros.  
                  No início de setembro, escrevo ao Prof. Darcy Mendonça Uchoa, eminente psiquiatra, professor universitário e psicanalista da SBPSP, para juntos propormos ao Ministério da Educação um programa de bolsas para facilitar a formação analítica de candidatos de outras cidades que não Rio, São Paulo e Porto Alegre, mediante ajuda financeira, principalmente para seus docentes. Ele não levou a sério essa ideia e a abandonou, embora eu a julgasse procedente.
                  Naquele ano, compareci ao II Congresso Brasileiro de Psicanálise em Porto Alegre, como candidato, e mantive correspondência amiga com os Drs. Blay Neto, Paulo Dias e Davanzo.
                  No segundo semestre de 1976, o Dr. Carlos David Segres, membro associado da SBPSP, telefonou-me, falando de seu interesse em trabalhar em Belo Horizonrw nos fins de semana. Oficializamos um curso na FMUFMG sobre Fundamentos da Psicanálise, que ele ministrou às sextas-feiras, à noite, com ótima audiência. Encaminhei-lhe vários analisandos para atendimento na sexta-feira e no sábado, dentre os quais três psiquiatras. Frequentemente, tínhamos encontro nas tardes de sábado, quando eu chegava de Brasília antes dele voltar para São Paulo. Seu trabalho aqui durou cerca de dois anos. Foi o segundo psicanalista da IPA a exercer um trabalho clínico aqui. O primeiro foi o Dr. Blay Neto, embora em Psicoterapia de Grupo. 
                  Ainda nesse ano, escrevo ao Dr. Mário Martins, então presidente da ABP, renovando meu pedido. Em dezembro de 1976, recebo carta do Dr. Gecel Luzer Sterling, então presidente da SBPSP, dizendo-me que fora contatado pelo Dr. Mário Martins e estava vendo como poderia atender Belo Horizonte, mas ficou na boa vontade. 
                  Em novembro de 1977, volto a escrever para a ABP, agora sob a presidência do Dr. Laertes Moura Ferrão. Em 4 de agosto de 1978, recebo resposta da ABP, por intermédio do Dr. Carlos H. P. Afonso, informando-me que minha carta havia sido debatida na reunião da ABP, no início de janeiro desse mesmo ano, e que ficou decidido que qualquer Sociedade estava franqueada para atender ao pedido. Depois, não recebi nenhuma comunicação.  Isto é, a história se repetia: não havia disponibilidade de analistas didatas.
       Os anos de 1979/1980/1981 e o início de 1982 foram vazios de articulação. Em dezembro de 1982, interrompi minha análise com a Dra. Virgínia e minha formação por São Paulo, a qual retomei em março de 1983 pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). Pesou nessa decisão a maior proximidade do Rio e alguns contatos antigos meus naquela cidade, que poderiam facilitar a criação do Núcleo daqui. 
                  Nessa época, vim a conhecer o Dr. Victor Manoel de Andrade, com quem fiz minha primeira supervisão, e o Dr. Sérgio Khedy, então candidato como eu e analisando dele. Esse fato aproximou-nos e comecei a convidá-lo, em tom de brincadeira, para morar aqui, após o término de sua formação.
                  Concluí meu curso em junho de 1986, nove anos após iniciá-lo em Brasília. Meu nome foi homologado como Membro Associado da SPRJ, título longamente buscado. Daí até 1988, apresentei os trabalhos na Sociedade para minha titulação como Membro Efetivo da mesma e Docente do seu Instintuto. Depois de aprovado, estava certo de que o Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte (NPBH) dependia diretamente da minha titulação a didata. 
                  Em janeiro de 1988, ocorre um fato importantíssimo. Sou contatado pelo Dr. Sérgio Khedy, informando-me do fim de sua formação e do desejo de radicar-se aqui. Organizamos sua vinda, inicialmente, nos fins de semana. Fiz várias indicações de pacientes, e sua clínica foi gradativamente aumentando, com pacientes que lhe encaminhava, até que acabou se mudando. Sobre essa transferência, escreveu o trabalho O analista que se muda. Sua companhia, juventude e temperamento extrovertido foram fundamentais para fortalecer meu ideal do Núcleo, que compartilhou comigo.
                  Em 1989, ocorrem outros fatos importantes. No mês de junho, acontece minha homologação como Membro Efetivo da Sociedade e Docente do Instituto de Ensino (IEP) da SPRJ. Consta da ata dessa Assembleia da SPRJ, pela primeira vez, e oficialmente, a questão do NPBH, por meio da fala do Dr. José Isaac Nigri, como segue: “Dr. Nigri informa que o Dr. Sebastião Abrão Salim não poderá vir hoje por doença na família e que está se candidatando a didata para formar um Núcleo em Belo Horizonte. O Dr. Izai comenta que o Dr. Salim tem um grupo de estudos”. 
                  Outro fato decisivo nesse ano foi a adesão, em abril, do Dr. Flávio Neves. Era um profissional muito prestigiado na Psiquiatria mineira, principalmente dentro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ao qual estava filiado. Nessa época, ocorriam modificações estruturais com o Círculo, com as quais ele não concordava. Um dia, solicitou um encontro comigo para falar de suas demandas de formação pela IPA, devido ao aprendizado que desenvolveu com renomados psicanalistas do exterior. Encontramo-nos e eu lhe disse que eu iria, provavelmente em junho de 1990, para didata. Coloquei-me à disposição para o que desejasse. Em seguida, ele conhece o Dr. Sérgio, de quem passa a ser amigo. Encaminhou vários candidatos para formação, e ele mesmo, ao entrar em formação analítica, constituiu-se em valioso representante nosso dentro da SPRJ, com excelente produção científica.
                  De fato, em junho de 1990, obtive a titulação de Psicanalista Didata da SPRJ, mais ansiada do que a de Membro Associado e Docente. Tal título qualificava-me mais dentro da Sociedade, com autorização para analisar candidatos a formação. 
                  O que era embrionário começou a se organizar e desenvolver com minha presença, do Dr. Sérgio, do Dr. Flávio e de alguns possíveis candidatos a formação. Nesse ano, veio juntar-se a nós a Dra. Clemilda Barbosa de Souza, outra psicanalista didata da SPRJ, inicialmente nos finais de semana, atendendo outros analisandos que lhe foram encaminhados e com propostas de formação. Ela possuía experiência na implantação dos Núcleos de Recife e de Campo Grande, fato que fortaleceu nosso propósito.  
                  O Dr. Sérgio foi preenchendo os requisitos para analista didata e, ao completar essa etapa, estávamos aptos institucionalmente para requerer à SPRJ nosso pedido de oficialização do NPBH, que exigia a existência de três analistas didatas morando na cidade. No Rio, contávamos abertamente com o apoio do Dr. José Izaac Nigri e do Dr. Nilo Ramos de Assis, respectivamente Presidente da SPRJ e Diretor do Instituto de Ensino. Ambos já estavam em fins de mandato e, por solicitação do novo candidato à Presidência, Dr. Ramón Fandiño, concordamos em remeter o pedido oficial para filiação do Núcleo junto à SPRJ no dia de sua posse, em 15 de janeiro de 1991. 
Assim o fizemos, mas desta data em diante, houve um silêncio, quebrado em maio de 1991, durante a realização do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise em São Paulo. Naquela ocasião, eu e o Dr. Sérgio conversamos pessoalmente com o Dr. Ramón e com a Dra. Léa Lengruber, Presidente e Diretora do Instituto da SPRJ. Parecia-nos que algo estranho estava acontecendo para explicar aquele silêncio, mas não nos foram dadas explicações. Apenas foram feitas exigências a mim e ao Dr. Sérgio. Deveríamos custear a divulgação das inscrições de candidatos à seleção, passagens aéreas e estadia dos analistas incumbidos da mesma, condições com as quais concordamos, mas ficou-nos a impressão de que não era só isso. Nesse Congresso, estava presente o Dr. Horacio Etchegoyen, candidato à Presidência da IPA. Procurei-o e conversei longamente sobre nossa situação. Ele hipotecou seu apoio para interceder junto à SPRJ para sanar dificuldades.
                  Em junho, no dia 4, em circular aos membros docentes da SPRJ, constava da pauta da reunião no seu item 2 “A abertura de inscrições para a formação do futuro Núcleo de Belo Horizonte”. Foi sugerido que se fizesse a divulgação aqui e a avaliação de quantas pessoas se inscreveriam e, depois, viesse um didata para uma reunião com os mesmos.
                  Em 15 de julho de 1991, recebo correspondência da Dra. Léa, comunicando-me os passos a serem dados e o conteúdo da circular de divulgação. Segui os ordenamentos e, com a ajuda da Dra. Jannê de Oliveira Campos, fizemos a divulgação. Vinte pessoas contataram com a Secretaria do IEP da SPRJ. Finalmente, em 23 de novembro de 1991, ela vem a Belo Horizonte, e realizou-se no Hospital Galba Veloso, a reunião com ela e os interessados, em número aproximado de 38 pessoas. Os interessados deveriam fazer contato com a SPRJ no Rio de Janeiro a fim de se inscreverem para seleção. Quando a deixei no aeroporto de Confins, no seu retorno, fiquei com a impressão de houvera uma reunião proveitosa, embora marcada por vários desencontros e atrasos inesperados, desnecessários e evitáveis.
                  Em 6 de janeiro de 1992, recebo carta da mesma, confirmando minha impressão sobre a reunião, dizendo-se motivada com o interesse dos postulantes ─ havendo 13 interessados com 2 anos de experiência terapêutica ─ e comunicando que, em março, viria uma comissão do Instituto para o trabalho de seleção oficial. 
                  A essa altura, havíamos formulado a ela nossa preferência pelo Dr. Victor Manoel de Andrade para Coordenador do Núcleo. Neste mesmo dia, recebo outra comunicação de um colega, na qual me informava que no dia seguinte haveria reunião do Corpo Docente do Instituto de Ensino da Psicanálise da SPRJ para aprovação da constituição do Núcleo, fato que não me foi revelado oficialmente por correspondência. 
                  Às 19h30min do dia 7 de janeiro de 1992, eu estava na Sociedade. Ao chegar, fui abordado por uma colega que tentou me convencer de que não seria propício eu enfatizar na reunião o pedido de oficialização do Núcleo. Interpretei aquilo como uma resistência de natureza política dentro do IEP, embora achasse absurdo esse critério para lidar com iniciativas de ordem científica. Tal pensamento me fortaleceu e ansiei pela chegada do Dr. Victor Manoel de Andrade. Este, finalmente, chegou e eu lhe disse sobre meu propósito de pedir a oficialização e de sua indicação para Coordenador. No seu habitual acolhimento e simplicidade, ele concordou.
                  Esta reunião transcorreu num clima tenso, diante da existência das oposições que eu intuíra, embora nunca me certificasse dos motivos. Fiz uma exposição dos fatos mencionados neste trabalho, da minha incessante jornada e dos elementos concretos que tínhamos para início do Núcleo, já com turma de  formação, fato relativamente inédito na Psicanálise brasileira. Entre os docentes, encontravam-se antigos alunos da Faculdade, orientados por mim para formação na SPRJ, e muitos colegas que reconheciam nossos propósitos. Pedi a oficialização e aprovação do Coordenador para o Núcleo e, finalmente, a razão prevaleceu.
                  O Núcleo foi oficializado e o Dr. Nilo Ramos de Assis apresentou o Dr. Victor como candidato a Coordenador, que recebeu aprovação unânime. No final, mais algumas palavras, e saí apressado para pegar o ônibus de volta a Belo Horizonte. Finalmente, havia concretizado meu ideal: oficializar uma entidade científica psicanalítica de acordo com as referências da IPA. Estava feliz também pela aprovação do Dr. Victor para coordená-lo, com sua amizade, seu afeto e sua respeitável bagagem científica e institucional. De fato, ele dedicou despojadamente seu tempo com vindas a Belo Horizonte para fazer um trabalho exemplar de como se constitui um Núcleo psicanalítico, elaborando seu estatuto e nos orientando em termos do seu fortalecimento.
                  Em 21 de maio de 1993, realizamos a sessão de oficialização do NPBH com a presença de representantes da ABP, SPRJ e da Dra. Maria Manhães, que pronunciou a primeira aula do curso de formação de psicanalistas. 
                  Este resumo mostra que o Núcleo foi produto de um trabalho meu incessante, continuado, por muito tempo solitário. Agora, alcançado esse patamar de parcerias e organização, outros desenvolvimentos iriam acontecer, sempre voltados para auxiliar os pacientes que demandam tratamento psicanalítico.
A Psicanálise jamais poderá deixar de priorizar seu eixo clínico e de pesquisa. É uma ciência em evolução e formação continuada, como deve suceder com todos os psicanalistas. Todos os fatos citados neste trabalho estão comprovados por documentos em meu poder. 
                  Após 15 anos de atividades, houve um crescimento palpável do NPBH. Nesse período, formamos duas turmas de psicanalistas em número de oito e consolidamos nossa estrutura de ensino e pesquisa com mais três psicanalistas de São Paulo e dois do Rio de Janeiro. Uma terceira turma de dez candidatos começou a formação em agosto de 2008. 
                  Em setembro de 2008, recebemos o registro da IPA de Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais (GEPMG). Emancipamo-nos da Coordenação da SPRJ e passamos a funcionar diretamente ligados à IPA, com Diretoria e Instituto de Psicanálise autônomos, orientados por dois analistas indicados pela IPA.
            Em julho de 2015 nosso GEPMG foi promovido a Sociedade Psicanalítica Provisória com o nome de Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais, durante o Congresso Internacional da Associação Psicanalítica Internacional, realizado em Chicago, USA.
Todas estas etapas foram longas e demandaram um trabalho artesanal e a fidelidade ao ideal do início de 1963, isto é, dotar Minas Gerais de uma instituição de formação de psicanalistas dentro dos critérios da IPA a serviço da comunidade mineira.


domingo, 22 de novembro de 2015

A metamorfose de Kafka: um ensaio literário-psicanalítico




RESUMO

A metamorfose, de Franz Kafka, obra-prima da literatura universal, tem conteúdos literário enigmático. Gregor Samsa é o principal personagem e sua transformação em uma grande barata, da noite para o dia, é excepcionalmente original.
Neste trabalho, utilizo conhecimentos científicos, desenvolvidos mediante articulação de contribuições da Psicanálise, da Psiquiatria, da Neurobiologia e da Psicologia Experimental, para explicar essa obra de Kafka e depois usá-la como ilustração em seus estudos.
Por meio deste conto, demonstro aquilo que o homem tem negado sistematicamente, isto é, que possui um funcionamento físico e psíquico semelhante ao dos animais diante de situações adversas de vida, regido de forma filogenética e reflexa, desde a vida fetal até etapas tardias do seu desenvolvimento. Constitui a memória implícita ou procedural produto do armazenamento do aprendizado de comportamentos voltados para o continuar existindo, com sede na amídala cerebral. Talvez tenha relação com o ego corporal de Freud, noção que não desenvolveu. Este funcionamento está tão transparente nessa narrativa onírica de Kafka, e contém um conteúdo fantasmagórico, asqueroso, sofrido, que torna a leitura difícil por possuirmos aspectos pessoais do leitor desse conto.



Palavras-chave: metamorfose; Kafka; memória implícita; trauma, estresse.
Introdução


“Ao despertar pela manhã após ter tido sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama metamorfoseado num inseto gigantesco”. Franz Kafka


Freud afirmou aprender mais com os escritores e os poetas do que com os médicos e filósofos que o antecederam. Assim, utilizou a obra literária O rei Édipo, de Sófocles, para ilustrar o Complexo de Édipo, que considerou o elemento central da etiologia das neuroses.
Do mesmo modo, neste ensaio, utilizo a obra literária A metamorfose (1915) de Franz Kafka, para ilustrar aquilo que o homem tenta esconder de si mesmo, isto é, sua parte animal. Ela atua de modo imperceptível no seu comportamento cotidiano, voltada para a sobrevivência, e seu funcionamento inicia-se nos primórdios da vida fetal. Seu substrato anatômico é a amídala cerebral, sede da memória de procedimento, implícita ou procedural.
Freud, ao enunciar a noção de um ego corporal anterior ao ego psíquico, talvez estivesse fazendo referência a essa memória biológica, mas não desenvolveu esse estudo.
Como se verá, o funcionamento dessa memória persiste com as mesmas respostas biológicas e psíquicas às ameaças de morte nas etapas sucessivas do desenvolvimento do ser humano desde a fetal, de natureza biológica inata e reflexa. Diferencia-se do inconsciente freudiano, que também rege de forma imperceptível o comportamento humano, pela relação deste com a repressão do instinto sexual e suas vicissitudes. O inconsciente freudiano forma-se depois que o bebê consegue estabelecer vinculação com um objeto, após diferenciá-lo de si com a maturação do Sistema Nervoso Central.
O reconhecimento pelo homem de sua parte animal e de sua importância no seu destino teria o sentido de uma quarta ferida narcísica.
Munido do referencial teórico psicanalítico encontrei no conto de Kafka A metamorfose uma ilustração clínica perfeita da etiologia, sintomas e efeitos biológicos e psíquicos do transtorno de estresse pós-traumático, entidade clínica bastante frequente na clínica psicanalítica e psiquiátrica atual.
Desenvolvi este estudo ao longo de anos, articulando contribuições da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental.
Minha experiência clínica levou-me a enriquecer os paradigmas clássicos da Psicanálise relativos à vida sexual dos seres humanos, com novos acréscimos teóricos para a compreensão da atual clínica do desvalimento e do vazio, dos transtornos alimentares, do autismo, do sintoma psicossomático, da adição às drogas e ao alcoolismo e das psicoses. Portanto, posso afirmar que minha vivência clínica tem sido marcada por resultados clínicos estimulantes.
A parte animal do homem, representada pela sua metamorfose em barata está tão transparente no conto de Kafka, que torna o conto, sofrido e de leitura difícil para muitos leitores.
A narrativa tem um conteúdo onírico e é legítimo vaticinar que Kafka tenha sonhado com a metamorfose do homem em animal, bastante presente para os psicanalistas que conferem veracidade e importância clínica a este fenômeno. Kafka se serviu de sua sensibilidade às ansiedades pessoais e sua ousadia de escritor imaginativo par escrever essa obra literária ímpar.
Está incluído entre os escritores que melhor utilizaram a arte da escrita para representar as diversas paixões, sofrimentos e condutas do homem. Sua obra literária é resultado da sua existência sofrida.
É possível que tenha usado a arte literária para sobreviver psiquicamente, de acordo com a regra geral de que o escritor escreve primeiro para si próprio e depois para o leitor. Ao escrever A metamorfose, desnudou-se, talvez como nenhum outro escritor o fez na história da literatura clássica universal. 


Biografia de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883, onde viveu toda sua vida. Seu pai era um abastado comerciante judeu, autoritário e conservador no trato da família, que subestimava os dotes literários do filho. Kafka descreveu esse conflituoso relacionamento com patética penetração no livro Carta ao Pai, uma coletânea de missivas tornada célebre e que não chegou a ser entregue em vida ao pai.
Era introvertido e sentia-se um estranho em sua casa. A mãe era submissa ao marido. Tinha três irmãs que tiveram destino trágico. Morreram nos campos de extermínio nazista.
Kafka formou-se em Direito, em 1906. Trabalhou por oito anos, como advogado em uma companhia de seguros, sem se identificar com a natureza da profissão. Queria e precisava de todo o tempo disponível para escrever e ler. 
Em 1914, Kafka teve uma depressão, devido seus conflitos intrapsíquicos: a origem judia, às incompatibilidades familiares e às descontinuidades amorosas.
Esteve noivo duas vezes de Felice Bauer. Não se casou com ela, nem com outras mulheres que marcaram sua vida, como a escritora Milena Jesenká-Pollak que foi sua amante e com a qual manteve uma correspondência reunida em Cartas a Milena —, e Dora Dyamant, uma jovem que conheceu no final da vida.
Também o início da Primeira Grande Guerra teve efeito negativo sobre ele. Por ter profetizado a história do povo judeu diante do nazismo, seus livros foram proibidos de comercialização pelo Estado instalado, alguns sendo queimados.
Janouch conviveu com Kafka nos anos finais de sua vida e no livro Conversas com Kafka, mostra como o escritor refletia sabiamente sobre a existência humana. Há citações de reflexões suas como: “A existência humana é demasiado penosa, por isto queremos nos livrar dela, ao menos pela imaginação”, ou “O mal sempre volta ao seu ponto de partida”, e ainda,

O caminho que leva da impressão ao conhecimento é quase sempre longo e difícil, e muitas pessoas não passam de mesquinhos viajantes. É preciso perdoar-lhes quando vêm titubeando chocar-se contra nós como em uma parede (Janouch, 1985).

Acometido pela tuberculose, Kafka teve hemoptise em 1917. Viveu mais sete anos, sendo os dois últimos, internado. Faleceu com 36 anos de idade, sentindo-se fracassado como homem e escritor.
Kokis, mais recentemente, referiu-se assim a ele: “Kafka foi um homem de seu tempo e por tê-lo sido de modo radical, possuindo uma consciência traumatizada, sucumbiu, não sem antes bradar sua angústia e horror ante o seu mundo”.

A obra literária

Monumento em Praga - 
Ilustrativo da relação de Kafka com o pai


A obra literária de Kafka, escrita em alemão, teve início em 1909, com a publicação de Descrição de um Combate. Publicou O processo, Carta ao Pai, O castelo, América, Diário, Na Colônia Penal, A metamorfose, A sentença, Um médico rural. Escreveu até o final de sua vida, em 1923, o último livro Um artista da fome.
Poucos foram editados em vida. Antes de morrer, Kafka obrigou o amigo Max Brod prometer-lhe que queimaria suas obras não publicadas. Felizmente, para a literatura universal, Brod faltou-lhe com a palavra.
Seus escritos retratam as angústias do homem de seu tempo. Denunciam os aspectos dominadores e brutais presente nas relações das pessoas por parte da autoridade. Espelhado no livro O processo, comparável em grandeza literária a Crime e Castigo de Dostoievski, ambos com temática parecida, mostraram a fraqueza do ser humano diante do poder, evidenciando a dor e o sofrimento humano. Tudo com tal requinte, que até as deformações, de descrição difícil, são precisas, como em A metamorfose.
Sua obra, tida por alguns como um conjunto de sonhos, antes interpretada como simples delírios de uma mente doentia, deve ser vista como reflexo de uma realidade pessoal.
Segundo Kokis

“Sua colocação é responsável por toda uma nova concepção de literatura dominante em nosso tempo e desligada dos antigos cânones do naturalismo descritivo, que Kafka abate mortalmente. O homem de seu tempo não é homem estabilizado e reificado no século XIX, mas sim um ser em tensão face ao desenvolvimento avassalador da tecnologia e dos instrumentos de opressão e alienação do capitalismo em crise.... É um homem que luta engajado em situações-limites, ao mesmo tempo universal e concreto... Depois de Kafka, a forma e o conteúdo da literatura autêntica modificam-se fundamentalmente. Dá origem a uma nova concepção do homem, personagem enfocado concretamente, e exige também uma nova concepção do homem leitor, que penetra na obra debatendo-se necessariamente consigo mesmo, ao contrário da aceitação ingênua e habitual do realismo descritivo ou narrativo anterior... Agora, na luta, que é inadiável, parece impotente e mortal contra aquela parede dos valores burgueses, que como um animal, redobra as forças quando percebe a morte”.

Kafka não conseguiu atingir prestígio como escritor em vida, apesar da originalidade e da excelência das obras. Muitos o reduziram àquele que falava do homem que virou inseto.


Sobre A metamorfose
Kafka terminou de escrever A metamorfose em 1912. Foi publicado em 1915. Narra a história de Gregor Samsa, um jovem caixeiro-viajante, que vivia com sua família (pai, mãe e uma irmã) e a mantinha financeiramente. Acordou certa manhã, como barata gigante com dimensão de um ser humano. Sentiu dificuldades para aprontar e pegar o trem que o levaria ao local de trabalho. A fala modificada, os movimentos motores lentificados e a mente entorpecida. Como Gregor não apareceu no serviço, o chefe foi à sua casa para avaliar a razão da ausência. Obrigado a mostrar-se ao chefe e aos familiares, a apresentação causou repugnância geral. É enxotado de volta ao seu quarto pelo pai, que o atingiu nas costas com uma maçã, causando-lhe uma infecção grave. A doença, outros maus tratos e o sofrimento levaram Gregor a optar pela morte.
O estilo literário de Kafka adentra a modernidade. Emprega uma abordagem impregnada de horror. A narrativa arrastada, monótona, asquerosa, nauseante e aflitiva, reflete sua essência impregnada da angústia rouca, que permeia a narrativa, e beira o cansaço e o desinteresse pela vida. Reflete o tédio vivenciado pelo personagem-autor em relação ao humano e do próprio mundo em relação a seu verdadeiro Ser. Gregor é recusado, refletido em sua horrível aparência de barata, rejeitada pelo consenso comum. Kafka usa um método alegórico que imita a linguagem onírica, mantendo uma analogia com situações reais, entulhadas no curso da vida. A escrita é dotada da coragem para revelar em detalhes aquilo que o ser humano deseja negar sempre: a possibilidade da descontinuidade da sua existência.
Para muitos críticos literários esse texto de Kafka pode ser considerado ficcionista. A narrativa, porém, insiste nas premissas da arte, que inclui o insólito, o incognoscível, o absurdo, o patético, o fantasmagórico e o real.
A metamorfose de Franz Kafka tocou e continua a tocar em questões cruciais da luta existencial do ser humano para continuar existindo. Don Quijote de La Mancha, de Cervantes, escrito anteriormente, não seria mais um relato comovente e tragicômico dessa luta?
Para Kokis:
 A metamorfose talvez seja a obra — excetuando a Carta ao Pai — que é mais um documento bibliográfico que mais profunda e acessivelmente revela a problemática kafkiana... É um relato autêntico das impressões sentidas por Kafka em relação aos seus e em sua casa, onde era visto com alguma coisa de reprovável e desprezível, física, moral e socialmente... Acima de tudo, trata-se de uma profunda experiência humana pessoal narrada friamente, além de interessante exposição dos costumes e do comportamento de sua sociedade... Inicialmente, após acordar, a posição de Gregor é uma posição indefesa, de costas face ao mundo, oferecendo seu frágil abdome de inseto como presa fácil.


Fundamentação teórica
Publiquei vários trabalhos sobre o trauma (2002c, 2005, 2006) segundo o conceito de trauma, segundo o DMV–IV (1994). É definido como um evento que produz em sua vítima uma noção de morte. A articulação das contribuições da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental pode acrescentar aspectos teóricos importantes a esse conceito psiquiátrico.
Sua vítima apresenta como traço geral uma crescente insuficiência para a vida familiar, social e profissional e recebe críticas hostis do meio ambiente, que incorpora e passa a fazer a si por meio de seu superego.
Apresenta respostas biológicas e psíquicas como uma Desconexão entre a parte cortical do cérebro mais especificamente o lobo pré-frontal, onde está a sede da cognição e o hipotálamo. Este contém, a amídala cerebral, de onde emanam as respostas biológicas ao trauma, aprendidas filogeneticamente, portanto reflexas e inatas. Quando a vítima de um trauma consegue racionaliza-lo, já apresentou um comportamento de imobilidade, ou de luta ou de fuga, dependendo do contexto, da iminência do perigo e do aprendizado, armazenado na memória procedural. O corpo chega antes que a mente.
A vítima do trauma ausenta-se de si mesma. Fica mais comandada por essa memória, voltada para manter a sobrevivência.
Descrevi (2005) o Conceito de Desconexão, assim resumido: a primeira matriz psíquica remonta ao período fetal, matriz autista-contígua (Ogden, 1989b), no qual a noção de estar existindo é dada pela regularidade de ritmo e intensidade das experiências sensoriais, relacionadas às funções vitais ordenadas pelo Sistema Nervoso Autônomo, por meio da amídala cerebral. Ainda nesse período, com o progresso dos processos de maturação, o feto é capaz de produzir intuitivamente em si mesmo experiências sensoriais (Tustin, 1990) com os dedos, a língua, a saliva, as fezes e a urina sobre a pele e as mucosas bucal, intestinal e uretral. Têm função autoapaziguadora em situações acompanhadas de sensação de morte, tais como traumas físicos, enfermidades, estados de toxicidade, estados de baixa oxigenação e outras. Esse mecanismo persiste nas etapas sucessivas do desenvolvimento, como assistimos no bruxismo, na diurese noturna, nos estados de sudorese intensa e mesmo em atos impensados, como prensar as chaves do carro nas mãos ou as contas de um terço com os dedos.
As experiências sensoriais são registradas pela incipiente memória de procedimento e inicia o desenvolvimento da noção de como sou e onde estou. Esta seria um ego biológico, pré-histórico, pré-simbólico e ano-objetal. No período fetal não há um sujeito interpretante devido a pouca maturação das estruturas corticais do Sistema Nervoso Central. Tudo tem semelhança com a vida animal. Tudo é inato, reflexo e autônomo. Não existe "uma cabeça para pensar". 
O Conceito de Desconexão contém a hipótese de que o homem após um trauma com consciência consistente de morte, conforme conceituado pelo DSM-IV, se autoapazigua com o registro das experiências sensoriais e busca a sobrevivência, retraindo-se para o estado inicial autistico da homeostase. Aí, permanece em suspensão animada, com um metabolismo limitado à absorção e gasto mínimo de oxigênio, conforme experiências recentes de Eric et al (2005) com órgãos para transplantes. Utilizam esse princípio para prolongar a vida do órgão a ser transplantado após a morte do doador.
Além de recompor a sensação de continuar existindo, as experiências sensoriais autogeradas promovem um sentimento de coesão física e psíquica. É possível detectar, em exames de ultrassonografia fetal, os fetos tocando com as mãos e os dedos os órgãos sexuais, a boca e as orelhas. Os adultos realizam as mesmas ações sintomáticas mencionadas.
De forma paradoxal, a Desconexão das estruturas cognitivas corticais torna a vítima do trauma mais insuficiente para avaliar e responder as crescentes demandas de sua realidade interna e externa, e necessitam de um esforço físico e psíquico maior, exatamente quando está mais fragilizada. Gera-se um estado de estresse (Selye, 1936) que vai exaurindo suas forças, e acaba por desistir da vida.
Gregor, o personagem kafkiano, é portador desse transtorno. Kafka demonstra a existência de Gregor vivendo como um animal, mas pensando como um homem, elemento característico da Desconexão. Alguns pacientes relatam textualmente: "sinto-me uma barata".

A metamorfose de Kafka e o Conceito de Desconexão
Na adolescência, tentei ler A metamorfose. A leitura foi abandonada por ser sentida como confusa, cansativa e desconcertante. Mas o exemplar foi guardado e, certamente, não por acaso, retomado para leitura de férias, entre muitas opções de escolha em anos recentes. Havia algo de comum entre o livro, desde logo pelo título e o que vinha descrevendo como Desconexão.
Pude constatar a riqueza da descrição dos detalhes de A metamorfose para ilustrar e enriquecer seu Conceito de Desconexão. De modo semelhante, o equipava para realizar a análise do livro, até então, feita de forma fragmentada e insuficiente com os referenciais teóricos clássicos da Psicanálise, da Psicologia e da Sociologia. Desse lugar surgiu este trabalho.

A compreensão de A metamorfose
A narração, segundo tradução de Cajado (1948), começa com a exposição da transmutação do personagem, Gregor Samsa, em um inseto do seu tamanho, dotado de muitas pernas e couraça, uma barata. Seu pensamento, no entanto, evolui como de um ser humano. Tal alteração manifesta-se após uma noite de sonhos intranquilos. Ele acordou e não se reconheceu mais: "Que me aconteceu? — pensou ele".
Metamorfose é uma palavra grega usada, especialmente, para descrever a transformação da crisálida em borboleta. Nessa narrativa de Kafka, a metáfora é usada para descrever o oposto: uma mudança para o estado de desvitalização. Todos nós passamos por metamorfoses em nossas vidas, melhores ou piores, discretas ou acentuadas. Ocorrem, às vezes, da noite para o dia. Dormimos mal e acordamos sentindo-nos bem ou vice-versa.
A metamorfose de Gregor Samsa revela a existência de um lado animal do homem, com o qual mantemos estreita relação de convivência e repúdio ao longo do dia e da noite. Debatemo-nos entre nossas respostas fisiológicas reflexas e instintivas — que nos atraem, porque nos vitalizam e preparam para o perigo —, e aquelas ditadas pela cognição, que nos diferenciam dos animais. Esta nossa luta interior é representada nas várias produções do homem civilizado. Por exemplo, nas touradas, em que um longo ritual é obedecido para ver o toureiro sobrepujar o touro, olho no olho; e nos competitivos rodeios, para testemunhar quem domina quem, se o animal ou o homem. Na mitologia grega, está representada pela lenda da esfinge de Tebas, metade homem e metade animal, e pela medusa, cujos cabelos da cabeça são serpentes. Também em sonhos com animais de formas normais ou esdrúxulas.
Essas respostas originam-se da posição psíquica fetal autista-contígua puramente sensorial, diferente das outras do pós-parto, que já contém um sujeito interpretante, dotado de funções cognitivas: a posição esquizoparanoide e a posição depressiva.  
Gregor sentia-se contrariado com o serviço de caixeiro-viajante — executado com o único propósito de sustentar a família —, pela rigidez do chefe, e pelo fato de seu pai, mãe e irmã não reconhecerem seu estado de contínuo estresse.
É muito significativo o relato da mãe de Gregor ao seu patrão, referindo-se aos dias que antecederam a metamorfose. Ela lhe conta que Gregor passava noites seguidas na sala, fazendo coleção de fotografias de mulheres e havia escolhido uma, cujo pescoço estava envolto por peles que lhe caíam sobre o colo e os braços, que havia mandado colocar em uma moldura e pendurado em seu quarto. Diz-lhe ainda da ocorrência de sonhos agitados.
Valorizei a existência desse quadro na narrativa, pelos estudos sobre a segunda pele (Bick, 1968, 1986). Em trabalho de 2002c sobre esses estudos e baseado em minha experiência clínica, destaco a existência de arranjos de natureza psíquica e orgânica, que denominou de "remendos" ou "costuras", para estancar o escoamento de conhecimento psíquico, resultante de uma ferida da superfície sensorial, principalmente a pele, por um trauma físico ou psíquico (Rosenfeld, 1980). Como ilustração, relata o caso clínico de um paciente psicótico e o estudo da fantasia do homem-aranha em nossas vidas.
A pele, envolvendo parte do corpo da mulher na fotografia, é um desses "remendos", o que já indicava que Gregor não estava bem. Kafka volta a mencioná-lo outras vezes durante a narrativa. Provavelmente, os sonhos intranquilos resultavam de agonias indizíveis, relacionadas a um estado que tinha o cheiro da morte e da loucura.
Kafka escreve[1]:

Pendurado por cima da mesa... havia um retrato que ele recortara recentemente de uma revista ilustrada e enquadrara numa bonita moldura dourada. A fotografia mostrava uma dama com um toucado e estola de pele sentada em posição ereta, tendo ao colo um imenso regalo também de pele, dentro do qual seus braços desapareciam completamente.

Após citar esse arranjo, Kafka prossegue, descrevendo os sintomas consequentes da metamorfose ocorrida. Primeiro, uma exacerbação da experiência sensorial ao estímulo físico auditivo. A exacerbação, que pode ser tátil, ou visual, ou olfativa, ou sinestésica, atesta a ausência da segunda pele como elemento protetor.  
Gregor queixa:

Mas como era possível dormir com aquele ruído do relógio nos ouvidos? (...) Sua maior preocupação era o barulhão que faria ao cair, e que provavelmente causaria uma certa ansiedade, se não terror, por trás daquelas portas.

Em segundo lugar, ocorre uma alteração do psiquismo. Trata-se de um embotamento, caracterizado pela lentidão do pensamento, da memória, do raciocínio, da orientação no tempo e no espaço, do juízo crítico e outras funções cognitivas: "Gregor realmente sentia-se bastante bem, exceto por uma espécie de entorpecimento".
Em terceiro lugar, ocorrem alterações ligadas às atividades motoras como o andar, falar, comer, e outras:

Gregor teve um choque ao ouvir sua própria voz respondendo a dela [da mãe], incontestavelmente era a dele mesmo, mas idêntica a um horrível guincho trêmulo e proferido num meio tom, que logo no primeiro momento permitia que as palavras fossem pronunciadas de uma forma clara, mas logo em seguida elevavam-se repercutindo num eco que anulava seu sentido, fazendo com que se duvidasse de tê-las ouvido corretamente.

Descrevendo outras manifestações motoras, como a imobilidade e a lentidão, Kafka continua:

Assim sendo procurou primeiramente mover a parte superior, e cautelosamente movimentou a cabeça na direção da beirada da cama. Aquilo foi difícil, e apesar do esforço para respirar e o imenso volume de seu corpo, este finalmente acompanhou o movimento de sua cabeça.

Na imobilidade o Ser permanece suspenso no mundo dos semivivos, onde fica apaziguado e à espera do retorno do ambiente confiável. Sua fala fica diferente, permanece mais na cama, o caminhar é lento e a sonolência incontrolada.
A seguir, Kafka, como um bom clínico, nos dá uma ideia melhor da situação traumática na qual Gregor vivia:

Se eu não tivesse que sustentar esta situação — o emprego — por causa de meus pais há muito tempo que teria pedido demissão, e dirigindo-me ao meu chefe, ter-lhe-ia dito o que penso dele.

Seu descontentamento com o serviço estava relacionado à natureza do trabalho e ao chefe autoritário, que veio à sua casa para saber a razão da ausência. A mãe defende Gregor, pensando mais em si mesma, e nas consequências negativas da demissão do filho, do que na pessoa dele:

Ele não deve estar passando bem — observou sua mãe ao visitante, enquanto seu pai continuava falando través da porta. — Não deve estar bem, pode crer, meu senhor. Senão, o que mais poderia tê-lo feito perder o trem! O rapaz só pensa no trabalho. Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Chego a ficar quase irritada ao vê-lo sempre em casa à noite. Há oito dias que está aqui não tendo saído em nenhuma delas.... Sua única distração consiste em molduras decorativas... uma delas está pendurada em seu quarto e verá quão bonita ela é, logo que ele abrir a porta... tenho certeza de que não está passando bem, embora não veja motivo para que isto ocorresse esta manhã.

O exame desse trecho da narrativa permite destacar alguns elementos responsáveis pela metamorfose de Gregor. Primeiro, a sensação de ser usado como objeto de consumo por todos que o cercam. Segundo, a rigidez do chefe denunciada pela vinda à sua casa e pela necessidade da mãe de justificar sua falta ao trabalho. Ela temia-o como impiedoso. Soma-se aos dois, a sua exigência consigo mesmo. No início da narrativa Gregor não se sente bem ao acordar. Ainda assim, tenta levantar-se a qualquer custo para não perder o trem. Como se verá adiante, o pai é, também, bastante rigoroso.
Outro elemento patogênico importante é a incapacidade da mãe para compreender as demandas de Gregor por auxílio. Evidencia-se que percebeu que ele não estava bem nesta afirmativa: "Durante duas ou três noites dedicou-se a recortar figuras para enquadrá-las, uma delas está em seu quarto...". Não valorizou sua percepção como um pedido de auxílio. Não se comportou como a mãe suficientemente boa de Winnicott (1962), que atende às demandas do bebê e, por vezes, chega antes dele, ensejando-lhe a experiência de ilusão, fundamental para o fortalecimento de seu sentimento de continuar existindo. O bebê sem essa mãe boa, quando ameaçado, tende para os movimentos autistas. O recolhimento de Gregor ao quarto obedece a essa tendência. Na mesma linha, pode-se entender seu desejo de quietude ou o entorpecimento psíquico: ele queria apenas sobreviver. Essas ações foram denominadas por Ogden de movimentos autistas:

O isolamento do tipo autista-contíguo implica em algum grau o ato da substituição da mãe como ambiente por um ambiente sensorial autogerado. Estou propondo que, desde os primórdios da vida psicológica (e ao longo de toda a vida), existe uma forma de experiência à qual a mãe, na condição de matriz psicológica, é substituída por uma matriz de sensação autônoma.

Ilustro com o caso de um paciente psicótico em tratamento comigo. Ele deixa o quarto, apenas, para fazer suas necessidades fisiológicas e ir às sessões de análise. Lá de dentro, sabe todo o movimento da casa, pelas chamadas da campainha, do telefone ou do bater de portas. Em tudo, é econômico, vivendo com o mínimo necessário. Apresenta inúmeras escoriações na pele, por coçá-la incessantemente, do mesmo modo como rói as unhas. Esse paciente roça sua pele em busca da produção da experiência sensorial autogerada para se sentir existindo, que substitui a sua mãe boa.
O isolamento de Gregor está justificado, objetivamente, pelas deformações que a metamorfose lhe produziu. Existe uma razão estética para seu isolamento. No entanto, a razão principal é a busca da sobrevivência pelo afastamento do ambiente hostil.        
Kafka prossegue a narrativa, retomando a ênfase da rigidez do chefe e agora, demonstrando a do pai. O chefe: "Os senhores entenderam uma só palavra do que ele [Gregor] falou? Era uma voz de animal. Certamente, está querendo fazer-nos de idiotas".  O pai: "Anna! Anna! — chamou o pai à porta da cozinha e batendo palmas. — Vá buscar um serralheiro, imediatamente”.
Diante dessas ameaças Gregor sente-se obrigado a se fazer ouvido e visto como lhe impunha o pai, categoricamente, nesse momento. Porém, sua situação é de aflitiva indecisão. O que seria mais recomendável? Sair e correr o risco de produzir asco e repugnação naquelas pessoas ou indispor-se mais com o chefe e o pai, pelo silêncio e afastamento? Gregor resolve ousar. "Ouçam — disse o chefe por trás da porta — ele está virando a chave... Um estalido mais alto demonstrou, finalmente, que a fechadura havia cedido". Abre-se a porta: a visão de Gregor foi impactante e despertou sentimento de horror no chefe e raiva no pai[2]:

Seu pai cerrou o punho com uma expressão feroz, como se pretendesse descarregá-lo sobre Gregor para fazê-lo voltar para o quarto... enxotou-o cruelmente para trás, perseguindo-o com assobios e gritando xô, xô, parecendo um selvagem... foi quando seu pai o empurrou por detrás com toda força... Gregor saiu voando para dentro do quarto, sangrando abundantemente. Com a bengala o pai empurrou a porta violentamente logo atrás dele, e afinal o silêncio voltou a reinar.

O pai estava desapontado com ele.  Conforme Kafka, "Seus pais não podiam entender aquilo; tinham-se convencido durante o transcorrer dos anos que o futuro de Gregor estava garantido na firma para toda a vida".
Ocorria um estado de incompreensão máxima. É, realmente, como acontece no mundo real. Este Ser é rejeitado como incapaz, preguiçoso, manipulador, dissimulado e desprovido de força de vontade. Mal sabem aqueles que julgam como está necessitado do contato côncavo das peles, dos toques macios e da palavra que sustenta. Desconectado, encontra-se em um estado de desamparo e insuficiência. Está recolhido em si mesmo.             Sartre (1943) mostra uma aguda sensibilidade da natureza do Ser, quando põe em palavras um pensamento rebuscado de beleza e realidade, no qual define o mais primitivo isolamento pessoal: “Resta saber em que região delicada e esquisita do Ser encontraremos o Ser que é seu próprio Nada”. Acrescenta-se que a sensação é seu próprio Tudo.

Em seguida, Kafka menciona outro sintoma frequente da Desconexão. O Ser passa a comer mais, conduzindo-se para a Bulimia ou passa a comer menos e se move em direção a Anorexia Nervosa. Isso é resultado da busca da baixa estimulação ou da hiperestimulação. Na primeira, vive com o mínimo, só para garantir a consciência do sentimento de que está vivo. Na segunda, busca desesperadamente sentir-se vivo, sem os riscos da descontinuidade.

Dias comia bem, a ponto que a lauta refeição inchara seu corpo de tal forma que se sentia comprimido por baixo do assento do sofá — lugar onde se escondia — mal podendo respirar — e quando não comia, o que vinha ocorrendo mais freqüentemente, ela (a irmã) murmurava quase com tristeza: deixou tudo outra vez.

Nessa altura, Kafka mergulha um pouco na história pessoal de Gregor. Há cinco anos, o pai enfrentara um colapso financeiro.

Naquela época o único desejo de Gregor era fazer o máximo para auxiliar a família a esquecer a catástrofe que sobre ela se abatera, deixando-a num estado de completo desespero... tornara-se um viajante comercial em vez de optar por um cargo modesto de funcionário de escritório, tendo evidentemente muito mais chance de ganhar dinheiro... Eles (a família) simplesmente haviam-se habituado àquilo — tanto a família quanto ele mesmo — sendo o dinheiro recebido com gratidão e oferecido com satisfação, sem, contudo haver nenhuma exibição de um sentimento mais efusivo... Logo de início [após a metamorfose], toda vez que ouvia mencionarem a necessidade de ganhar dinheiro, Gregor abandonava seu lugar por trás da porta, precipitando-se para seu cantinho fresco por baixo do sofá, sentindo-se agitado pela vergonha e tristeza.

A incompreensão da mãe, a rigidez do próprio Gregor, associada ao rigor do pai e à do chefe, agravavam a Desconexão. Gregor sentia-se cada vez mais desvitalizado, desvalorizado, censurável e repugnante, pelo estado seguido de estresse.
Passados os primeiros quinze dias, aconteceram tentativas da irmã e da mãe de ajudá-lo. Resolveram esvaziar-lhe o quarto, retirando a cômoda e a escrivaninha, para facilitar-lhe os movimentos. Os resultados foram lamentáveis. A escrivaninha e a cômoda davam-lhe os contornos da sua identidade e eram-lhe, afetivamente, muito significativas. Também o barulho, devido à sensibilidade sensorial aumentada, se constituiu em uma tortura.

... e o raspar das peças no assoalho tinham-no afetado de tal forma, como se repentinamente à sua volta houvesse ocorrido uma agitação tremenda, e por mais que encolhesse a cabeça e as patas, agachando-se completamente, no chão, teve que confessar intimamente que não aguentaria aquilo tudo por muito tempo.

Desesperado, Gregor se esforça para agarrar o quadro da dama pendurado na parede. Abraça-o, mantendo-se colado ao vidro e cobrindo-o com seu corpo enorme. No ato, insinua um desejo de que a dama do quadro faça o mesmo com ele, envolvendo-o com um abraço de peles, para lhe proteger da crescente ameaça de se desfazer.
Gregor está transtornado e por isso não se incomoda mais com os riscos de perder a mãe, caso ela o surpreenda agarrado ao quadro fixado na parede, em seu estado de metamorfose. A irmã percebe a situação e tenta afastar o olhar de sua mãe. Tudo é em vão. Ela o vê e grita: "— Oh, Deus! Meu Deus! — caindo desmaiada no sofá completamente imóvel". Nada ia bem para Gregor. Seu pai chega da rua e encontra a esposa desmaiada: "— Tal qual estava esperando — disse ele. — Já tinha avisado, mas vocês mulheres nunca ouvem nada".

Uma pausa e Kakfa refere-se a Gregor lembrando-se do pai no passado:

Aquele que para falar a verdade, nem podia levantar-se limitando a saudá-lo erguendo os braços, e que nas raras ocasiões em que saía com a família — um ou dois domingos por ano e nos feriados — caminhava entre Gregor e a mãe os quais embora andassem devagar, ele ainda o fazia mais lentamente, enfiado no velho sobretudo, arrastando com dificuldade os pés para frente auxiliado pela bengala de cabo curvo.

Constata-se que o pai de Gregor passou por uma Desconexão e não por uma depressão, identificada pela lentidão de seus passos, o agasalho pesado, e o isolamento. Foi decorrente do fracasso financeiro, que comprometeu a carreira dos filhos e resultou em uma situação de autoacusação impiedosa, que explica a aversão dele ao filho, ao vê-lo em estado semelhante, espelhando-o. O pai de Gregor condena-o por aquilo que ele mesmo não conseguiu evitar, ou seja, entregar-se aos movimentos autistas. Sua angústia não está relacionada com o Complexo de Édipo e a ameaça de castração ou com o sentimento de perda. A obra de Kafka refere-se, especificamente, à sobrevivência e à angústia frente à ameaça de se desfazer diante do trauma.
Prosseguindo, ao ver a esposa desmaiada, o pai de Gregor sente-se justificado para expressar sua ira.

... avançou para Gregor com uma expressão cruel.... Assim correu à frente do pai, parando quando ele parava e movendo-se mais depressa quando ele fazia qualquer movimento... de repente, sentiu qualquer coisa atirada sem muita força cair por trás dele, rolando para frente. Era uma maçã, e imediatamente recebeu uma outra. — Uma outra, porém, jogada imediatamente com um impulso maior caiu sobre o lado direito de sua costa afundando-se nela... Gregor sofrera um ferimento bastante sério, deixando-o inutilizado mais de um mês — a maçã permanecera grudada em seu corpo, tal qual uma recordação invisível, porquanto ninguém arriscara tirá-la dali.

A irmã tenta interceder: ... "[ Grete] alcançando-o [o pai], abraçando-o e unindo-se a ele completamente, com as mãos à volta do pescoço intercedendo pela vida do irmão".
Daí para frente a mãe e a irmã lhe dedicam só o cuidado indispensável. Choravam pelo seu destino. Para complicar mais a situação de Gregor, a família passou a vê-lo como um estorvo para os planos de mudança para uma moradia menor, onde teriam menos gastos materiais. Grete, já farta, conseguiu um trabalho. Os cuidados com Gregor foram delegados para a faxineira, que a substituiu. Essa não conseguia esperar a hora para atirar uma cadeira nas costas dele, tanto desejava o seu fim. Seus pais decidem alugar parte do apartamento para três senhores. O movimento na casa aumentou e diminuiu o espaço físico, dificultando a existência de Gregor.
Um dia, algo diferente aconteceu. Grete resolveu tocar seu violino. Juntaram-se todos na sala. Gregor foi atraído pela música e

... arriscou mover-se um pouco para frente, ficando com a cabeça dentro da sala.... Para falar a verdade, ninguém o percebeu.... Com o rosto inclinado para um lado, seu olhar triste e concentrado acompanhava as notas da música.... Seria realmente um animal, e mesmo assim, a música exercia um tal efeito sobre ele? Tinha a impressão de que um caminho se abrira à sua frente, levando-o até aquele alimento pelo qual tanto almejava. Decidira que continuaria avançando até alcançar sua irmã, e puxaria sua saia a fim de fazê-la que deveria ir até seu quarto com o violino, uma vez que naquela sala ninguém apreciava tanto quanto ele o que estava executando... pela primeira vez sentiu que sua figura assustadora ser-lhe-ia útil.

A mudança momentânea de Gregor exemplifica a exposição de Tustin (1990) sobre os objetos autistas e as formas autistas, utilizados pelo bebê e pelo adulto para lhes proporcionar uma experiência sensorial apaziguadora. São obtidas por toques rítmicos duros ou macios. Podem ser auditivas, visuais, táteis, olfativas ou gustativas. A boa música pode ser considerada uma forma autista, tanto o encontro das bochechas do bebê com a mama da mãe ou o contato agradável da água do banho com a pele do corpo. Como escreveu Kafka, Gregor sentiu-se alimentado, uma pausa para o seu sofrimento.
A narrativa vai mostrando o agravamento da situação. Um dos inquilinos, ao avistar sua figura horrível disse:

— Devo comunicar-lhes... que devido às condições desagradáveis que prevalecem nesta casa e nesta família — e cuspiu no chão para enfatizar sua declaração lacônica — retirar-nos-emos imediatamente.

Gregor sentiu a aproximação do final: "Receava, com certo grau de certeza, que a qualquer momento aquela tensão geral desabasse sobre ele num ataque combinado".
O finalmente veio de Grete, que mais o compreendera:

— Papai, ele tem que ir embora — gritou ela — é a única solução! O senhor simplesmente tem de abdicar da idéia de que aquilo é Gregor. O fato de termos acreditado nisso tanto tempo, é que originou todo este transtorno. Como pode aquilo ser ele? Se fosse, há muito que teria compreendido que os seres humanos não podem viver com um animal desta espécie, e teria partido de livre e espontânea vontade. Então não teríamos nenhum irmão, mas seriamos capazes de continuar a viver respeitando sua lembrança. Mas assim como é, este animal persegue-nos, enxota nossos inquilinos, e é evidente que deseja todo o apartamento para ele e permitiria até mesmo que fôssemos dormir na sarjeta.

Fica claro que agora só a incompreensão une a família a Gregor. Já o consideram como malvado, intencionalmente interessado em fazer-lhes a desgraça. De perseguido, passa a perseguidor e vai precisar viver como foragido. Até quando? Gregor sente suas forças físicas minadas. Conseguirá?
A narrativa, afinal, ganha intensidade trágica:

Logo depois descobriu que era incapaz de mover um só membro. Aquilo não o surpreendeu, antes não lhe parecia normal que tivesse realmente podido movimentar suas perninhas tão fracas. De qualquer modo se sentiu relativamente bem. Verdade é que seu corpo todo doía, mas teve a impressão que a dor ia diminuindo gradativamente e acabaria passando. A maçã apodrecera em suas costas e a região inflamada em volta, que estava coberta, já mal o incomodava.

Gregor permanecia na imobilidade total. Tem o fim inevitável. Não tolerando mais a hostilidade do meio e o sofrimento, se mata:

A decisão relativa ao seu desaparecimento, ele já a havia tomado muito mais energicamente que a irmã — se isto fosse possível.... Os primeiros clarões estendendo-se sobre o mundo que ficava do outro lado da janela invadiram uma vez mais suas faculdades de percepção. E, então de livre e espontânea vontade, afundou a cabeça no chão e de suas narinas exalou-se um último suspiro débil e trêmulo.

Considerações Finais
A metamorfose é uma obra-prima da literatura universal. Como outras, encerra elementos vitais do existir humano: a angústia de morte, a sobrevivência e a loucura.
Enquanto os leitores torcem pelo fim da metamorfose de Gregor, o pai e a mãe a desejavam para que ele continuasse mantendo o status quo da família. A ordem crescente de indisposição mútua conduziu a uma situação irreversível e à decisão, pelo próprio Gregor, de morrer.
Kafka manteve-se vivo, matando o personagem nessa provável catarse literária. Indo além da imaginação, pensando pelo lado oposto, e usando a mesma imagem de Kafka, é possível dizer que Gregor, com suas descontinuidades de vida, precisou tornar-se um homem de muitas pernas e uma couraça dura, para fazer frente aos golpes rudes da vida.
Talvez o homem atual, enfrentando toda sorte de violências a ameaçar-lhe a sobrevivência, tenha de se desdobrar para não definhar como Gregor Samsa.
Kafka insere-se na plêiade de autores clássicos como o escritor do inverossímil, do inacreditável e do absurdo. Ao contrário do que muitos pensavam e continuam pensando, escreveu e descreveu, por meio de uma gigantesca metáfora, a alma desertificada pela Desconexão.
Deve-se ressaltar que é válido continuar enfatizando a existência de uma psicopatologia originada do período fetal do ser humano, uma psicopatologia autistica, na qual as reações e respostas só podem estar voltadas para a preservação do continuar existindo e do autoapaziguamento diante da angústia de aniquilamento ou morte.



Referências

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[1] Kafka, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Todas as próximas citações referem-se a essa edição.
[2] Idem.