domingo, 22 de novembro de 2015

A metamorfose de Kafka: um ensaio literário-psicanalítico




RESUMO

A metamorfose, de Franz Kafka, obra-prima da literatura universal, tem conteúdos literário enigmático. Gregor Samsa é o principal personagem e sua transformação em uma grande barata, da noite para o dia, é excepcionalmente original.
Neste trabalho, utilizo conhecimentos científicos, desenvolvidos mediante articulação de contribuições da Psicanálise, da Psiquiatria, da Neurobiologia e da Psicologia Experimental, para explicar essa obra de Kafka e depois usá-la como ilustração em seus estudos.
Por meio deste conto, demonstro aquilo que o homem tem negado sistematicamente, isto é, que possui um funcionamento físico e psíquico semelhante ao dos animais diante de situações adversas de vida, regido de forma filogenética e reflexa, desde a vida fetal até etapas tardias do seu desenvolvimento. Constitui a memória implícita ou procedural produto do armazenamento do aprendizado de comportamentos voltados para o continuar existindo, com sede na amídala cerebral. Talvez tenha relação com o ego corporal de Freud, noção que não desenvolveu. Este funcionamento está tão transparente nessa narrativa onírica de Kafka, e contém um conteúdo fantasmagórico, asqueroso, sofrido, que torna a leitura difícil por possuirmos aspectos pessoais do leitor desse conto.



Palavras-chave: metamorfose; Kafka; memória implícita; trauma, estresse.
Introdução


“Ao despertar pela manhã após ter tido sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama metamorfoseado num inseto gigantesco”. Franz Kafka


Freud afirmou aprender mais com os escritores e os poetas do que com os médicos e filósofos que o antecederam. Assim, utilizou a obra literária O rei Édipo, de Sófocles, para ilustrar o Complexo de Édipo, que considerou o elemento central da etiologia das neuroses.
Do mesmo modo, neste ensaio, utilizo a obra literária A metamorfose (1915) de Franz Kafka, para ilustrar aquilo que o homem tenta esconder de si mesmo, isto é, sua parte animal. Ela atua de modo imperceptível no seu comportamento cotidiano, voltada para a sobrevivência, e seu funcionamento inicia-se nos primórdios da vida fetal. Seu substrato anatômico é a amídala cerebral, sede da memória de procedimento, implícita ou procedural.
Freud, ao enunciar a noção de um ego corporal anterior ao ego psíquico, talvez estivesse fazendo referência a essa memória biológica, mas não desenvolveu esse estudo.
Como se verá, o funcionamento dessa memória persiste com as mesmas respostas biológicas e psíquicas às ameaças de morte nas etapas sucessivas do desenvolvimento do ser humano desde a fetal, de natureza biológica inata e reflexa. Diferencia-se do inconsciente freudiano, que também rege de forma imperceptível o comportamento humano, pela relação deste com a repressão do instinto sexual e suas vicissitudes. O inconsciente freudiano forma-se depois que o bebê consegue estabelecer vinculação com um objeto, após diferenciá-lo de si com a maturação do Sistema Nervoso Central.
O reconhecimento pelo homem de sua parte animal e de sua importância no seu destino teria o sentido de uma quarta ferida narcísica.
Munido do referencial teórico psicanalítico encontrei no conto de Kafka A metamorfose uma ilustração clínica perfeita da etiologia, sintomas e efeitos biológicos e psíquicos do transtorno de estresse pós-traumático, entidade clínica bastante frequente na clínica psicanalítica e psiquiátrica atual.
Desenvolvi este estudo ao longo de anos, articulando contribuições da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental.
Minha experiência clínica levou-me a enriquecer os paradigmas clássicos da Psicanálise relativos à vida sexual dos seres humanos, com novos acréscimos teóricos para a compreensão da atual clínica do desvalimento e do vazio, dos transtornos alimentares, do autismo, do sintoma psicossomático, da adição às drogas e ao alcoolismo e das psicoses. Portanto, posso afirmar que minha vivência clínica tem sido marcada por resultados clínicos estimulantes.
A parte animal do homem, representada pela sua metamorfose em barata está tão transparente no conto de Kafka, que torna o conto, sofrido e de leitura difícil para muitos leitores.
A narrativa tem um conteúdo onírico e é legítimo vaticinar que Kafka tenha sonhado com a metamorfose do homem em animal, bastante presente para os psicanalistas que conferem veracidade e importância clínica a este fenômeno. Kafka se serviu de sua sensibilidade às ansiedades pessoais e sua ousadia de escritor imaginativo par escrever essa obra literária ímpar.
Está incluído entre os escritores que melhor utilizaram a arte da escrita para representar as diversas paixões, sofrimentos e condutas do homem. Sua obra literária é resultado da sua existência sofrida.
É possível que tenha usado a arte literária para sobreviver psiquicamente, de acordo com a regra geral de que o escritor escreve primeiro para si próprio e depois para o leitor. Ao escrever A metamorfose, desnudou-se, talvez como nenhum outro escritor o fez na história da literatura clássica universal. 


Biografia de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883, onde viveu toda sua vida. Seu pai era um abastado comerciante judeu, autoritário e conservador no trato da família, que subestimava os dotes literários do filho. Kafka descreveu esse conflituoso relacionamento com patética penetração no livro Carta ao Pai, uma coletânea de missivas tornada célebre e que não chegou a ser entregue em vida ao pai.
Era introvertido e sentia-se um estranho em sua casa. A mãe era submissa ao marido. Tinha três irmãs que tiveram destino trágico. Morreram nos campos de extermínio nazista.
Kafka formou-se em Direito, em 1906. Trabalhou por oito anos, como advogado em uma companhia de seguros, sem se identificar com a natureza da profissão. Queria e precisava de todo o tempo disponível para escrever e ler. 
Em 1914, Kafka teve uma depressão, devido seus conflitos intrapsíquicos: a origem judia, às incompatibilidades familiares e às descontinuidades amorosas.
Esteve noivo duas vezes de Felice Bauer. Não se casou com ela, nem com outras mulheres que marcaram sua vida, como a escritora Milena Jesenká-Pollak que foi sua amante e com a qual manteve uma correspondência reunida em Cartas a Milena —, e Dora Dyamant, uma jovem que conheceu no final da vida.
Também o início da Primeira Grande Guerra teve efeito negativo sobre ele. Por ter profetizado a história do povo judeu diante do nazismo, seus livros foram proibidos de comercialização pelo Estado instalado, alguns sendo queimados.
Janouch conviveu com Kafka nos anos finais de sua vida e no livro Conversas com Kafka, mostra como o escritor refletia sabiamente sobre a existência humana. Há citações de reflexões suas como: “A existência humana é demasiado penosa, por isto queremos nos livrar dela, ao menos pela imaginação”, ou “O mal sempre volta ao seu ponto de partida”, e ainda,

O caminho que leva da impressão ao conhecimento é quase sempre longo e difícil, e muitas pessoas não passam de mesquinhos viajantes. É preciso perdoar-lhes quando vêm titubeando chocar-se contra nós como em uma parede (Janouch, 1985).

Acometido pela tuberculose, Kafka teve hemoptise em 1917. Viveu mais sete anos, sendo os dois últimos, internado. Faleceu com 36 anos de idade, sentindo-se fracassado como homem e escritor.
Kokis, mais recentemente, referiu-se assim a ele: “Kafka foi um homem de seu tempo e por tê-lo sido de modo radical, possuindo uma consciência traumatizada, sucumbiu, não sem antes bradar sua angústia e horror ante o seu mundo”.

A obra literária

Monumento em Praga - 
Ilustrativo da relação de Kafka com o pai


A obra literária de Kafka, escrita em alemão, teve início em 1909, com a publicação de Descrição de um Combate. Publicou O processo, Carta ao Pai, O castelo, América, Diário, Na Colônia Penal, A metamorfose, A sentença, Um médico rural. Escreveu até o final de sua vida, em 1923, o último livro Um artista da fome.
Poucos foram editados em vida. Antes de morrer, Kafka obrigou o amigo Max Brod prometer-lhe que queimaria suas obras não publicadas. Felizmente, para a literatura universal, Brod faltou-lhe com a palavra.
Seus escritos retratam as angústias do homem de seu tempo. Denunciam os aspectos dominadores e brutais presente nas relações das pessoas por parte da autoridade. Espelhado no livro O processo, comparável em grandeza literária a Crime e Castigo de Dostoievski, ambos com temática parecida, mostraram a fraqueza do ser humano diante do poder, evidenciando a dor e o sofrimento humano. Tudo com tal requinte, que até as deformações, de descrição difícil, são precisas, como em A metamorfose.
Sua obra, tida por alguns como um conjunto de sonhos, antes interpretada como simples delírios de uma mente doentia, deve ser vista como reflexo de uma realidade pessoal.
Segundo Kokis

“Sua colocação é responsável por toda uma nova concepção de literatura dominante em nosso tempo e desligada dos antigos cânones do naturalismo descritivo, que Kafka abate mortalmente. O homem de seu tempo não é homem estabilizado e reificado no século XIX, mas sim um ser em tensão face ao desenvolvimento avassalador da tecnologia e dos instrumentos de opressão e alienação do capitalismo em crise.... É um homem que luta engajado em situações-limites, ao mesmo tempo universal e concreto... Depois de Kafka, a forma e o conteúdo da literatura autêntica modificam-se fundamentalmente. Dá origem a uma nova concepção do homem, personagem enfocado concretamente, e exige também uma nova concepção do homem leitor, que penetra na obra debatendo-se necessariamente consigo mesmo, ao contrário da aceitação ingênua e habitual do realismo descritivo ou narrativo anterior... Agora, na luta, que é inadiável, parece impotente e mortal contra aquela parede dos valores burgueses, que como um animal, redobra as forças quando percebe a morte”.

Kafka não conseguiu atingir prestígio como escritor em vida, apesar da originalidade e da excelência das obras. Muitos o reduziram àquele que falava do homem que virou inseto.


Sobre A metamorfose
Kafka terminou de escrever A metamorfose em 1912. Foi publicado em 1915. Narra a história de Gregor Samsa, um jovem caixeiro-viajante, que vivia com sua família (pai, mãe e uma irmã) e a mantinha financeiramente. Acordou certa manhã, como barata gigante com dimensão de um ser humano. Sentiu dificuldades para aprontar e pegar o trem que o levaria ao local de trabalho. A fala modificada, os movimentos motores lentificados e a mente entorpecida. Como Gregor não apareceu no serviço, o chefe foi à sua casa para avaliar a razão da ausência. Obrigado a mostrar-se ao chefe e aos familiares, a apresentação causou repugnância geral. É enxotado de volta ao seu quarto pelo pai, que o atingiu nas costas com uma maçã, causando-lhe uma infecção grave. A doença, outros maus tratos e o sofrimento levaram Gregor a optar pela morte.
O estilo literário de Kafka adentra a modernidade. Emprega uma abordagem impregnada de horror. A narrativa arrastada, monótona, asquerosa, nauseante e aflitiva, reflete sua essência impregnada da angústia rouca, que permeia a narrativa, e beira o cansaço e o desinteresse pela vida. Reflete o tédio vivenciado pelo personagem-autor em relação ao humano e do próprio mundo em relação a seu verdadeiro Ser. Gregor é recusado, refletido em sua horrível aparência de barata, rejeitada pelo consenso comum. Kafka usa um método alegórico que imita a linguagem onírica, mantendo uma analogia com situações reais, entulhadas no curso da vida. A escrita é dotada da coragem para revelar em detalhes aquilo que o ser humano deseja negar sempre: a possibilidade da descontinuidade da sua existência.
Para muitos críticos literários esse texto de Kafka pode ser considerado ficcionista. A narrativa, porém, insiste nas premissas da arte, que inclui o insólito, o incognoscível, o absurdo, o patético, o fantasmagórico e o real.
A metamorfose de Franz Kafka tocou e continua a tocar em questões cruciais da luta existencial do ser humano para continuar existindo. Don Quijote de La Mancha, de Cervantes, escrito anteriormente, não seria mais um relato comovente e tragicômico dessa luta?
Para Kokis:
 A metamorfose talvez seja a obra — excetuando a Carta ao Pai — que é mais um documento bibliográfico que mais profunda e acessivelmente revela a problemática kafkiana... É um relato autêntico das impressões sentidas por Kafka em relação aos seus e em sua casa, onde era visto com alguma coisa de reprovável e desprezível, física, moral e socialmente... Acima de tudo, trata-se de uma profunda experiência humana pessoal narrada friamente, além de interessante exposição dos costumes e do comportamento de sua sociedade... Inicialmente, após acordar, a posição de Gregor é uma posição indefesa, de costas face ao mundo, oferecendo seu frágil abdome de inseto como presa fácil.


Fundamentação teórica
Publiquei vários trabalhos sobre o trauma (2002c, 2005, 2006) segundo o conceito de trauma, segundo o DMV–IV (1994). É definido como um evento que produz em sua vítima uma noção de morte. A articulação das contribuições da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental pode acrescentar aspectos teóricos importantes a esse conceito psiquiátrico.
Sua vítima apresenta como traço geral uma crescente insuficiência para a vida familiar, social e profissional e recebe críticas hostis do meio ambiente, que incorpora e passa a fazer a si por meio de seu superego.
Apresenta respostas biológicas e psíquicas como uma Desconexão entre a parte cortical do cérebro mais especificamente o lobo pré-frontal, onde está a sede da cognição e o hipotálamo. Este contém, a amídala cerebral, de onde emanam as respostas biológicas ao trauma, aprendidas filogeneticamente, portanto reflexas e inatas. Quando a vítima de um trauma consegue racionaliza-lo, já apresentou um comportamento de imobilidade, ou de luta ou de fuga, dependendo do contexto, da iminência do perigo e do aprendizado, armazenado na memória procedural. O corpo chega antes que a mente.
A vítima do trauma ausenta-se de si mesma. Fica mais comandada por essa memória, voltada para manter a sobrevivência.
Descrevi (2005) o Conceito de Desconexão, assim resumido: a primeira matriz psíquica remonta ao período fetal, matriz autista-contígua (Ogden, 1989b), no qual a noção de estar existindo é dada pela regularidade de ritmo e intensidade das experiências sensoriais, relacionadas às funções vitais ordenadas pelo Sistema Nervoso Autônomo, por meio da amídala cerebral. Ainda nesse período, com o progresso dos processos de maturação, o feto é capaz de produzir intuitivamente em si mesmo experiências sensoriais (Tustin, 1990) com os dedos, a língua, a saliva, as fezes e a urina sobre a pele e as mucosas bucal, intestinal e uretral. Têm função autoapaziguadora em situações acompanhadas de sensação de morte, tais como traumas físicos, enfermidades, estados de toxicidade, estados de baixa oxigenação e outras. Esse mecanismo persiste nas etapas sucessivas do desenvolvimento, como assistimos no bruxismo, na diurese noturna, nos estados de sudorese intensa e mesmo em atos impensados, como prensar as chaves do carro nas mãos ou as contas de um terço com os dedos.
As experiências sensoriais são registradas pela incipiente memória de procedimento e inicia o desenvolvimento da noção de como sou e onde estou. Esta seria um ego biológico, pré-histórico, pré-simbólico e ano-objetal. No período fetal não há um sujeito interpretante devido a pouca maturação das estruturas corticais do Sistema Nervoso Central. Tudo tem semelhança com a vida animal. Tudo é inato, reflexo e autônomo. Não existe "uma cabeça para pensar". 
O Conceito de Desconexão contém a hipótese de que o homem após um trauma com consciência consistente de morte, conforme conceituado pelo DSM-IV, se autoapazigua com o registro das experiências sensoriais e busca a sobrevivência, retraindo-se para o estado inicial autistico da homeostase. Aí, permanece em suspensão animada, com um metabolismo limitado à absorção e gasto mínimo de oxigênio, conforme experiências recentes de Eric et al (2005) com órgãos para transplantes. Utilizam esse princípio para prolongar a vida do órgão a ser transplantado após a morte do doador.
Além de recompor a sensação de continuar existindo, as experiências sensoriais autogeradas promovem um sentimento de coesão física e psíquica. É possível detectar, em exames de ultrassonografia fetal, os fetos tocando com as mãos e os dedos os órgãos sexuais, a boca e as orelhas. Os adultos realizam as mesmas ações sintomáticas mencionadas.
De forma paradoxal, a Desconexão das estruturas cognitivas corticais torna a vítima do trauma mais insuficiente para avaliar e responder as crescentes demandas de sua realidade interna e externa, e necessitam de um esforço físico e psíquico maior, exatamente quando está mais fragilizada. Gera-se um estado de estresse (Selye, 1936) que vai exaurindo suas forças, e acaba por desistir da vida.
Gregor, o personagem kafkiano, é portador desse transtorno. Kafka demonstra a existência de Gregor vivendo como um animal, mas pensando como um homem, elemento característico da Desconexão. Alguns pacientes relatam textualmente: "sinto-me uma barata".

A metamorfose de Kafka e o Conceito de Desconexão
Na adolescência, tentei ler A metamorfose. A leitura foi abandonada por ser sentida como confusa, cansativa e desconcertante. Mas o exemplar foi guardado e, certamente, não por acaso, retomado para leitura de férias, entre muitas opções de escolha em anos recentes. Havia algo de comum entre o livro, desde logo pelo título e o que vinha descrevendo como Desconexão.
Pude constatar a riqueza da descrição dos detalhes de A metamorfose para ilustrar e enriquecer seu Conceito de Desconexão. De modo semelhante, o equipava para realizar a análise do livro, até então, feita de forma fragmentada e insuficiente com os referenciais teóricos clássicos da Psicanálise, da Psicologia e da Sociologia. Desse lugar surgiu este trabalho.

A compreensão de A metamorfose
A narração, segundo tradução de Cajado (1948), começa com a exposição da transmutação do personagem, Gregor Samsa, em um inseto do seu tamanho, dotado de muitas pernas e couraça, uma barata. Seu pensamento, no entanto, evolui como de um ser humano. Tal alteração manifesta-se após uma noite de sonhos intranquilos. Ele acordou e não se reconheceu mais: "Que me aconteceu? — pensou ele".
Metamorfose é uma palavra grega usada, especialmente, para descrever a transformação da crisálida em borboleta. Nessa narrativa de Kafka, a metáfora é usada para descrever o oposto: uma mudança para o estado de desvitalização. Todos nós passamos por metamorfoses em nossas vidas, melhores ou piores, discretas ou acentuadas. Ocorrem, às vezes, da noite para o dia. Dormimos mal e acordamos sentindo-nos bem ou vice-versa.
A metamorfose de Gregor Samsa revela a existência de um lado animal do homem, com o qual mantemos estreita relação de convivência e repúdio ao longo do dia e da noite. Debatemo-nos entre nossas respostas fisiológicas reflexas e instintivas — que nos atraem, porque nos vitalizam e preparam para o perigo —, e aquelas ditadas pela cognição, que nos diferenciam dos animais. Esta nossa luta interior é representada nas várias produções do homem civilizado. Por exemplo, nas touradas, em que um longo ritual é obedecido para ver o toureiro sobrepujar o touro, olho no olho; e nos competitivos rodeios, para testemunhar quem domina quem, se o animal ou o homem. Na mitologia grega, está representada pela lenda da esfinge de Tebas, metade homem e metade animal, e pela medusa, cujos cabelos da cabeça são serpentes. Também em sonhos com animais de formas normais ou esdrúxulas.
Essas respostas originam-se da posição psíquica fetal autista-contígua puramente sensorial, diferente das outras do pós-parto, que já contém um sujeito interpretante, dotado de funções cognitivas: a posição esquizoparanoide e a posição depressiva.  
Gregor sentia-se contrariado com o serviço de caixeiro-viajante — executado com o único propósito de sustentar a família —, pela rigidez do chefe, e pelo fato de seu pai, mãe e irmã não reconhecerem seu estado de contínuo estresse.
É muito significativo o relato da mãe de Gregor ao seu patrão, referindo-se aos dias que antecederam a metamorfose. Ela lhe conta que Gregor passava noites seguidas na sala, fazendo coleção de fotografias de mulheres e havia escolhido uma, cujo pescoço estava envolto por peles que lhe caíam sobre o colo e os braços, que havia mandado colocar em uma moldura e pendurado em seu quarto. Diz-lhe ainda da ocorrência de sonhos agitados.
Valorizei a existência desse quadro na narrativa, pelos estudos sobre a segunda pele (Bick, 1968, 1986). Em trabalho de 2002c sobre esses estudos e baseado em minha experiência clínica, destaco a existência de arranjos de natureza psíquica e orgânica, que denominou de "remendos" ou "costuras", para estancar o escoamento de conhecimento psíquico, resultante de uma ferida da superfície sensorial, principalmente a pele, por um trauma físico ou psíquico (Rosenfeld, 1980). Como ilustração, relata o caso clínico de um paciente psicótico e o estudo da fantasia do homem-aranha em nossas vidas.
A pele, envolvendo parte do corpo da mulher na fotografia, é um desses "remendos", o que já indicava que Gregor não estava bem. Kafka volta a mencioná-lo outras vezes durante a narrativa. Provavelmente, os sonhos intranquilos resultavam de agonias indizíveis, relacionadas a um estado que tinha o cheiro da morte e da loucura.
Kafka escreve[1]:

Pendurado por cima da mesa... havia um retrato que ele recortara recentemente de uma revista ilustrada e enquadrara numa bonita moldura dourada. A fotografia mostrava uma dama com um toucado e estola de pele sentada em posição ereta, tendo ao colo um imenso regalo também de pele, dentro do qual seus braços desapareciam completamente.

Após citar esse arranjo, Kafka prossegue, descrevendo os sintomas consequentes da metamorfose ocorrida. Primeiro, uma exacerbação da experiência sensorial ao estímulo físico auditivo. A exacerbação, que pode ser tátil, ou visual, ou olfativa, ou sinestésica, atesta a ausência da segunda pele como elemento protetor.  
Gregor queixa:

Mas como era possível dormir com aquele ruído do relógio nos ouvidos? (...) Sua maior preocupação era o barulhão que faria ao cair, e que provavelmente causaria uma certa ansiedade, se não terror, por trás daquelas portas.

Em segundo lugar, ocorre uma alteração do psiquismo. Trata-se de um embotamento, caracterizado pela lentidão do pensamento, da memória, do raciocínio, da orientação no tempo e no espaço, do juízo crítico e outras funções cognitivas: "Gregor realmente sentia-se bastante bem, exceto por uma espécie de entorpecimento".
Em terceiro lugar, ocorrem alterações ligadas às atividades motoras como o andar, falar, comer, e outras:

Gregor teve um choque ao ouvir sua própria voz respondendo a dela [da mãe], incontestavelmente era a dele mesmo, mas idêntica a um horrível guincho trêmulo e proferido num meio tom, que logo no primeiro momento permitia que as palavras fossem pronunciadas de uma forma clara, mas logo em seguida elevavam-se repercutindo num eco que anulava seu sentido, fazendo com que se duvidasse de tê-las ouvido corretamente.

Descrevendo outras manifestações motoras, como a imobilidade e a lentidão, Kafka continua:

Assim sendo procurou primeiramente mover a parte superior, e cautelosamente movimentou a cabeça na direção da beirada da cama. Aquilo foi difícil, e apesar do esforço para respirar e o imenso volume de seu corpo, este finalmente acompanhou o movimento de sua cabeça.

Na imobilidade o Ser permanece suspenso no mundo dos semivivos, onde fica apaziguado e à espera do retorno do ambiente confiável. Sua fala fica diferente, permanece mais na cama, o caminhar é lento e a sonolência incontrolada.
A seguir, Kafka, como um bom clínico, nos dá uma ideia melhor da situação traumática na qual Gregor vivia:

Se eu não tivesse que sustentar esta situação — o emprego — por causa de meus pais há muito tempo que teria pedido demissão, e dirigindo-me ao meu chefe, ter-lhe-ia dito o que penso dele.

Seu descontentamento com o serviço estava relacionado à natureza do trabalho e ao chefe autoritário, que veio à sua casa para saber a razão da ausência. A mãe defende Gregor, pensando mais em si mesma, e nas consequências negativas da demissão do filho, do que na pessoa dele:

Ele não deve estar passando bem — observou sua mãe ao visitante, enquanto seu pai continuava falando través da porta. — Não deve estar bem, pode crer, meu senhor. Senão, o que mais poderia tê-lo feito perder o trem! O rapaz só pensa no trabalho. Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Chego a ficar quase irritada ao vê-lo sempre em casa à noite. Há oito dias que está aqui não tendo saído em nenhuma delas.... Sua única distração consiste em molduras decorativas... uma delas está pendurada em seu quarto e verá quão bonita ela é, logo que ele abrir a porta... tenho certeza de que não está passando bem, embora não veja motivo para que isto ocorresse esta manhã.

O exame desse trecho da narrativa permite destacar alguns elementos responsáveis pela metamorfose de Gregor. Primeiro, a sensação de ser usado como objeto de consumo por todos que o cercam. Segundo, a rigidez do chefe denunciada pela vinda à sua casa e pela necessidade da mãe de justificar sua falta ao trabalho. Ela temia-o como impiedoso. Soma-se aos dois, a sua exigência consigo mesmo. No início da narrativa Gregor não se sente bem ao acordar. Ainda assim, tenta levantar-se a qualquer custo para não perder o trem. Como se verá adiante, o pai é, também, bastante rigoroso.
Outro elemento patogênico importante é a incapacidade da mãe para compreender as demandas de Gregor por auxílio. Evidencia-se que percebeu que ele não estava bem nesta afirmativa: "Durante duas ou três noites dedicou-se a recortar figuras para enquadrá-las, uma delas está em seu quarto...". Não valorizou sua percepção como um pedido de auxílio. Não se comportou como a mãe suficientemente boa de Winnicott (1962), que atende às demandas do bebê e, por vezes, chega antes dele, ensejando-lhe a experiência de ilusão, fundamental para o fortalecimento de seu sentimento de continuar existindo. O bebê sem essa mãe boa, quando ameaçado, tende para os movimentos autistas. O recolhimento de Gregor ao quarto obedece a essa tendência. Na mesma linha, pode-se entender seu desejo de quietude ou o entorpecimento psíquico: ele queria apenas sobreviver. Essas ações foram denominadas por Ogden de movimentos autistas:

O isolamento do tipo autista-contíguo implica em algum grau o ato da substituição da mãe como ambiente por um ambiente sensorial autogerado. Estou propondo que, desde os primórdios da vida psicológica (e ao longo de toda a vida), existe uma forma de experiência à qual a mãe, na condição de matriz psicológica, é substituída por uma matriz de sensação autônoma.

Ilustro com o caso de um paciente psicótico em tratamento comigo. Ele deixa o quarto, apenas, para fazer suas necessidades fisiológicas e ir às sessões de análise. Lá de dentro, sabe todo o movimento da casa, pelas chamadas da campainha, do telefone ou do bater de portas. Em tudo, é econômico, vivendo com o mínimo necessário. Apresenta inúmeras escoriações na pele, por coçá-la incessantemente, do mesmo modo como rói as unhas. Esse paciente roça sua pele em busca da produção da experiência sensorial autogerada para se sentir existindo, que substitui a sua mãe boa.
O isolamento de Gregor está justificado, objetivamente, pelas deformações que a metamorfose lhe produziu. Existe uma razão estética para seu isolamento. No entanto, a razão principal é a busca da sobrevivência pelo afastamento do ambiente hostil.        
Kafka prossegue a narrativa, retomando a ênfase da rigidez do chefe e agora, demonstrando a do pai. O chefe: "Os senhores entenderam uma só palavra do que ele [Gregor] falou? Era uma voz de animal. Certamente, está querendo fazer-nos de idiotas".  O pai: "Anna! Anna! — chamou o pai à porta da cozinha e batendo palmas. — Vá buscar um serralheiro, imediatamente”.
Diante dessas ameaças Gregor sente-se obrigado a se fazer ouvido e visto como lhe impunha o pai, categoricamente, nesse momento. Porém, sua situação é de aflitiva indecisão. O que seria mais recomendável? Sair e correr o risco de produzir asco e repugnação naquelas pessoas ou indispor-se mais com o chefe e o pai, pelo silêncio e afastamento? Gregor resolve ousar. "Ouçam — disse o chefe por trás da porta — ele está virando a chave... Um estalido mais alto demonstrou, finalmente, que a fechadura havia cedido". Abre-se a porta: a visão de Gregor foi impactante e despertou sentimento de horror no chefe e raiva no pai[2]:

Seu pai cerrou o punho com uma expressão feroz, como se pretendesse descarregá-lo sobre Gregor para fazê-lo voltar para o quarto... enxotou-o cruelmente para trás, perseguindo-o com assobios e gritando xô, xô, parecendo um selvagem... foi quando seu pai o empurrou por detrás com toda força... Gregor saiu voando para dentro do quarto, sangrando abundantemente. Com a bengala o pai empurrou a porta violentamente logo atrás dele, e afinal o silêncio voltou a reinar.

O pai estava desapontado com ele.  Conforme Kafka, "Seus pais não podiam entender aquilo; tinham-se convencido durante o transcorrer dos anos que o futuro de Gregor estava garantido na firma para toda a vida".
Ocorria um estado de incompreensão máxima. É, realmente, como acontece no mundo real. Este Ser é rejeitado como incapaz, preguiçoso, manipulador, dissimulado e desprovido de força de vontade. Mal sabem aqueles que julgam como está necessitado do contato côncavo das peles, dos toques macios e da palavra que sustenta. Desconectado, encontra-se em um estado de desamparo e insuficiência. Está recolhido em si mesmo.             Sartre (1943) mostra uma aguda sensibilidade da natureza do Ser, quando põe em palavras um pensamento rebuscado de beleza e realidade, no qual define o mais primitivo isolamento pessoal: “Resta saber em que região delicada e esquisita do Ser encontraremos o Ser que é seu próprio Nada”. Acrescenta-se que a sensação é seu próprio Tudo.

Em seguida, Kafka menciona outro sintoma frequente da Desconexão. O Ser passa a comer mais, conduzindo-se para a Bulimia ou passa a comer menos e se move em direção a Anorexia Nervosa. Isso é resultado da busca da baixa estimulação ou da hiperestimulação. Na primeira, vive com o mínimo, só para garantir a consciência do sentimento de que está vivo. Na segunda, busca desesperadamente sentir-se vivo, sem os riscos da descontinuidade.

Dias comia bem, a ponto que a lauta refeição inchara seu corpo de tal forma que se sentia comprimido por baixo do assento do sofá — lugar onde se escondia — mal podendo respirar — e quando não comia, o que vinha ocorrendo mais freqüentemente, ela (a irmã) murmurava quase com tristeza: deixou tudo outra vez.

Nessa altura, Kafka mergulha um pouco na história pessoal de Gregor. Há cinco anos, o pai enfrentara um colapso financeiro.

Naquela época o único desejo de Gregor era fazer o máximo para auxiliar a família a esquecer a catástrofe que sobre ela se abatera, deixando-a num estado de completo desespero... tornara-se um viajante comercial em vez de optar por um cargo modesto de funcionário de escritório, tendo evidentemente muito mais chance de ganhar dinheiro... Eles (a família) simplesmente haviam-se habituado àquilo — tanto a família quanto ele mesmo — sendo o dinheiro recebido com gratidão e oferecido com satisfação, sem, contudo haver nenhuma exibição de um sentimento mais efusivo... Logo de início [após a metamorfose], toda vez que ouvia mencionarem a necessidade de ganhar dinheiro, Gregor abandonava seu lugar por trás da porta, precipitando-se para seu cantinho fresco por baixo do sofá, sentindo-se agitado pela vergonha e tristeza.

A incompreensão da mãe, a rigidez do próprio Gregor, associada ao rigor do pai e à do chefe, agravavam a Desconexão. Gregor sentia-se cada vez mais desvitalizado, desvalorizado, censurável e repugnante, pelo estado seguido de estresse.
Passados os primeiros quinze dias, aconteceram tentativas da irmã e da mãe de ajudá-lo. Resolveram esvaziar-lhe o quarto, retirando a cômoda e a escrivaninha, para facilitar-lhe os movimentos. Os resultados foram lamentáveis. A escrivaninha e a cômoda davam-lhe os contornos da sua identidade e eram-lhe, afetivamente, muito significativas. Também o barulho, devido à sensibilidade sensorial aumentada, se constituiu em uma tortura.

... e o raspar das peças no assoalho tinham-no afetado de tal forma, como se repentinamente à sua volta houvesse ocorrido uma agitação tremenda, e por mais que encolhesse a cabeça e as patas, agachando-se completamente, no chão, teve que confessar intimamente que não aguentaria aquilo tudo por muito tempo.

Desesperado, Gregor se esforça para agarrar o quadro da dama pendurado na parede. Abraça-o, mantendo-se colado ao vidro e cobrindo-o com seu corpo enorme. No ato, insinua um desejo de que a dama do quadro faça o mesmo com ele, envolvendo-o com um abraço de peles, para lhe proteger da crescente ameaça de se desfazer.
Gregor está transtornado e por isso não se incomoda mais com os riscos de perder a mãe, caso ela o surpreenda agarrado ao quadro fixado na parede, em seu estado de metamorfose. A irmã percebe a situação e tenta afastar o olhar de sua mãe. Tudo é em vão. Ela o vê e grita: "— Oh, Deus! Meu Deus! — caindo desmaiada no sofá completamente imóvel". Nada ia bem para Gregor. Seu pai chega da rua e encontra a esposa desmaiada: "— Tal qual estava esperando — disse ele. — Já tinha avisado, mas vocês mulheres nunca ouvem nada".

Uma pausa e Kakfa refere-se a Gregor lembrando-se do pai no passado:

Aquele que para falar a verdade, nem podia levantar-se limitando a saudá-lo erguendo os braços, e que nas raras ocasiões em que saía com a família — um ou dois domingos por ano e nos feriados — caminhava entre Gregor e a mãe os quais embora andassem devagar, ele ainda o fazia mais lentamente, enfiado no velho sobretudo, arrastando com dificuldade os pés para frente auxiliado pela bengala de cabo curvo.

Constata-se que o pai de Gregor passou por uma Desconexão e não por uma depressão, identificada pela lentidão de seus passos, o agasalho pesado, e o isolamento. Foi decorrente do fracasso financeiro, que comprometeu a carreira dos filhos e resultou em uma situação de autoacusação impiedosa, que explica a aversão dele ao filho, ao vê-lo em estado semelhante, espelhando-o. O pai de Gregor condena-o por aquilo que ele mesmo não conseguiu evitar, ou seja, entregar-se aos movimentos autistas. Sua angústia não está relacionada com o Complexo de Édipo e a ameaça de castração ou com o sentimento de perda. A obra de Kafka refere-se, especificamente, à sobrevivência e à angústia frente à ameaça de se desfazer diante do trauma.
Prosseguindo, ao ver a esposa desmaiada, o pai de Gregor sente-se justificado para expressar sua ira.

... avançou para Gregor com uma expressão cruel.... Assim correu à frente do pai, parando quando ele parava e movendo-se mais depressa quando ele fazia qualquer movimento... de repente, sentiu qualquer coisa atirada sem muita força cair por trás dele, rolando para frente. Era uma maçã, e imediatamente recebeu uma outra. — Uma outra, porém, jogada imediatamente com um impulso maior caiu sobre o lado direito de sua costa afundando-se nela... Gregor sofrera um ferimento bastante sério, deixando-o inutilizado mais de um mês — a maçã permanecera grudada em seu corpo, tal qual uma recordação invisível, porquanto ninguém arriscara tirá-la dali.

A irmã tenta interceder: ... "[ Grete] alcançando-o [o pai], abraçando-o e unindo-se a ele completamente, com as mãos à volta do pescoço intercedendo pela vida do irmão".
Daí para frente a mãe e a irmã lhe dedicam só o cuidado indispensável. Choravam pelo seu destino. Para complicar mais a situação de Gregor, a família passou a vê-lo como um estorvo para os planos de mudança para uma moradia menor, onde teriam menos gastos materiais. Grete, já farta, conseguiu um trabalho. Os cuidados com Gregor foram delegados para a faxineira, que a substituiu. Essa não conseguia esperar a hora para atirar uma cadeira nas costas dele, tanto desejava o seu fim. Seus pais decidem alugar parte do apartamento para três senhores. O movimento na casa aumentou e diminuiu o espaço físico, dificultando a existência de Gregor.
Um dia, algo diferente aconteceu. Grete resolveu tocar seu violino. Juntaram-se todos na sala. Gregor foi atraído pela música e

... arriscou mover-se um pouco para frente, ficando com a cabeça dentro da sala.... Para falar a verdade, ninguém o percebeu.... Com o rosto inclinado para um lado, seu olhar triste e concentrado acompanhava as notas da música.... Seria realmente um animal, e mesmo assim, a música exercia um tal efeito sobre ele? Tinha a impressão de que um caminho se abrira à sua frente, levando-o até aquele alimento pelo qual tanto almejava. Decidira que continuaria avançando até alcançar sua irmã, e puxaria sua saia a fim de fazê-la que deveria ir até seu quarto com o violino, uma vez que naquela sala ninguém apreciava tanto quanto ele o que estava executando... pela primeira vez sentiu que sua figura assustadora ser-lhe-ia útil.

A mudança momentânea de Gregor exemplifica a exposição de Tustin (1990) sobre os objetos autistas e as formas autistas, utilizados pelo bebê e pelo adulto para lhes proporcionar uma experiência sensorial apaziguadora. São obtidas por toques rítmicos duros ou macios. Podem ser auditivas, visuais, táteis, olfativas ou gustativas. A boa música pode ser considerada uma forma autista, tanto o encontro das bochechas do bebê com a mama da mãe ou o contato agradável da água do banho com a pele do corpo. Como escreveu Kafka, Gregor sentiu-se alimentado, uma pausa para o seu sofrimento.
A narrativa vai mostrando o agravamento da situação. Um dos inquilinos, ao avistar sua figura horrível disse:

— Devo comunicar-lhes... que devido às condições desagradáveis que prevalecem nesta casa e nesta família — e cuspiu no chão para enfatizar sua declaração lacônica — retirar-nos-emos imediatamente.

Gregor sentiu a aproximação do final: "Receava, com certo grau de certeza, que a qualquer momento aquela tensão geral desabasse sobre ele num ataque combinado".
O finalmente veio de Grete, que mais o compreendera:

— Papai, ele tem que ir embora — gritou ela — é a única solução! O senhor simplesmente tem de abdicar da idéia de que aquilo é Gregor. O fato de termos acreditado nisso tanto tempo, é que originou todo este transtorno. Como pode aquilo ser ele? Se fosse, há muito que teria compreendido que os seres humanos não podem viver com um animal desta espécie, e teria partido de livre e espontânea vontade. Então não teríamos nenhum irmão, mas seriamos capazes de continuar a viver respeitando sua lembrança. Mas assim como é, este animal persegue-nos, enxota nossos inquilinos, e é evidente que deseja todo o apartamento para ele e permitiria até mesmo que fôssemos dormir na sarjeta.

Fica claro que agora só a incompreensão une a família a Gregor. Já o consideram como malvado, intencionalmente interessado em fazer-lhes a desgraça. De perseguido, passa a perseguidor e vai precisar viver como foragido. Até quando? Gregor sente suas forças físicas minadas. Conseguirá?
A narrativa, afinal, ganha intensidade trágica:

Logo depois descobriu que era incapaz de mover um só membro. Aquilo não o surpreendeu, antes não lhe parecia normal que tivesse realmente podido movimentar suas perninhas tão fracas. De qualquer modo se sentiu relativamente bem. Verdade é que seu corpo todo doía, mas teve a impressão que a dor ia diminuindo gradativamente e acabaria passando. A maçã apodrecera em suas costas e a região inflamada em volta, que estava coberta, já mal o incomodava.

Gregor permanecia na imobilidade total. Tem o fim inevitável. Não tolerando mais a hostilidade do meio e o sofrimento, se mata:

A decisão relativa ao seu desaparecimento, ele já a havia tomado muito mais energicamente que a irmã — se isto fosse possível.... Os primeiros clarões estendendo-se sobre o mundo que ficava do outro lado da janela invadiram uma vez mais suas faculdades de percepção. E, então de livre e espontânea vontade, afundou a cabeça no chão e de suas narinas exalou-se um último suspiro débil e trêmulo.

Considerações Finais
A metamorfose é uma obra-prima da literatura universal. Como outras, encerra elementos vitais do existir humano: a angústia de morte, a sobrevivência e a loucura.
Enquanto os leitores torcem pelo fim da metamorfose de Gregor, o pai e a mãe a desejavam para que ele continuasse mantendo o status quo da família. A ordem crescente de indisposição mútua conduziu a uma situação irreversível e à decisão, pelo próprio Gregor, de morrer.
Kafka manteve-se vivo, matando o personagem nessa provável catarse literária. Indo além da imaginação, pensando pelo lado oposto, e usando a mesma imagem de Kafka, é possível dizer que Gregor, com suas descontinuidades de vida, precisou tornar-se um homem de muitas pernas e uma couraça dura, para fazer frente aos golpes rudes da vida.
Talvez o homem atual, enfrentando toda sorte de violências a ameaçar-lhe a sobrevivência, tenha de se desdobrar para não definhar como Gregor Samsa.
Kafka insere-se na plêiade de autores clássicos como o escritor do inverossímil, do inacreditável e do absurdo. Ao contrário do que muitos pensavam e continuam pensando, escreveu e descreveu, por meio de uma gigantesca metáfora, a alma desertificada pela Desconexão.
Deve-se ressaltar que é válido continuar enfatizando a existência de uma psicopatologia originada do período fetal do ser humano, uma psicopatologia autistica, na qual as reações e respostas só podem estar voltadas para a preservação do continuar existindo e do autoapaziguamento diante da angústia de aniquilamento ou morte.



Referências

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Tustin, F. (1990). Barreiras autistas em pacientes psiconeuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas.

Winnicott, D. W. (1962). O ambiente e os processos de maturação. A integração do ego no desenvolvimento da criança. Porto Alegre: Artes Médicas.



[1] Kafka, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Todas as próximas citações referem-se a essa edição.
[2] Idem.

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