RESUMO
A metamorfose, de Franz Kafka,
obra-prima da literatura universal, tem conteúdos literário enigmático. Gregor
Samsa é o principal personagem e sua transformação em uma grande barata, da
noite para o dia, é excepcionalmente original.
Neste trabalho, utilizo conhecimentos científicos, desenvolvidos mediante
articulação de contribuições da Psicanálise, da Psiquiatria, da Neurobiologia e
da Psicologia Experimental, para explicar essa obra de Kafka e depois usá-la
como ilustração em seus estudos.
Por meio deste conto, demonstro aquilo que o homem tem negado
sistematicamente, isto é, que possui um funcionamento físico e psíquico
semelhante ao dos animais diante de situações adversas de vida, regido de forma
filogenética e reflexa, desde a vida fetal até etapas tardias do seu
desenvolvimento. Constitui a memória implícita ou procedural produto do armazenamento
do aprendizado de comportamentos voltados para o continuar existindo, com sede na amídala cerebral. Talvez tenha
relação com o ego corporal de Freud, noção que não desenvolveu. Este funcionamento
está tão transparente nessa narrativa onírica de Kafka, e contém um conteúdo
fantasmagórico, asqueroso, sofrido, que torna a leitura difícil por possuirmos
aspectos pessoais do leitor desse conto.
Palavras-chave: metamorfose; Kafka; memória implícita; trauma,
estresse.
Introdução
“Ao despertar
pela manhã após ter tido sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua
própria cama metamorfoseado num inseto gigantesco”. Franz Kafka
Freud afirmou aprender mais com os escritores e os poetas do que com os
médicos e filósofos que o antecederam. Assim, utilizou a obra literária O rei Édipo, de Sófocles, para ilustrar o
Complexo de Édipo, que considerou o elemento central da etiologia das neuroses.
Do mesmo modo, neste ensaio, utilizo a obra literária A metamorfose (1915) de Franz Kafka, para
ilustrar aquilo que o homem tenta esconder de si mesmo, isto é, sua parte
animal. Ela atua
de modo imperceptível no seu comportamento cotidiano, voltada para a sobrevivência,
e seu funcionamento inicia-se nos primórdios da vida fetal. Seu substrato
anatômico é a amídala cerebral, sede da memória de procedimento, implícita ou
procedural.
Freud, ao enunciar a noção de um ego corporal anterior ao ego psíquico,
talvez estivesse fazendo referência a essa memória biológica, mas não
desenvolveu esse estudo.
Como se verá, o funcionamento dessa memória persiste com as mesmas
respostas biológicas e psíquicas às ameaças de morte nas etapas sucessivas do desenvolvimento
do ser humano desde a fetal, de natureza biológica inata e reflexa. Diferencia-se
do inconsciente freudiano, que também rege de forma imperceptível o comportamento
humano, pela relação deste com a repressão do instinto sexual e suas
vicissitudes. O inconsciente freudiano forma-se depois que o bebê consegue
estabelecer vinculação com um objeto, após diferenciá-lo de si com a maturação
do Sistema Nervoso Central.
O reconhecimento pelo homem de sua parte animal e de sua importância no
seu destino teria o sentido de uma quarta ferida narcísica.
Munido do referencial teórico psicanalítico encontrei no conto de Kafka A metamorfose uma ilustração clínica
perfeita da etiologia, sintomas e efeitos biológicos e psíquicos do transtorno
de estresse pós-traumático, entidade clínica bastante frequente na clínica
psicanalítica e psiquiátrica atual.
Desenvolvi este estudo ao longo de anos, articulando contribuições da
Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental.
Minha experiência clínica levou-me a enriquecer os paradigmas clássicos
da Psicanálise relativos à vida sexual dos seres humanos, com novos acréscimos
teóricos para a compreensão da atual clínica do desvalimento e do vazio, dos
transtornos alimentares, do autismo, do sintoma psicossomático, da adição às
drogas e ao alcoolismo e das psicoses. Portanto, posso afirmar que minha vivência
clínica tem sido marcada por resultados clínicos estimulantes.
A parte animal do homem, representada pela sua metamorfose em barata está
tão transparente no conto de Kafka, que torna o conto, sofrido e de leitura
difícil para muitos leitores.
A narrativa tem um conteúdo onírico e é legítimo vaticinar que Kafka tenha
sonhado com a metamorfose do homem em animal, bastante presente para os
psicanalistas que conferem veracidade e importância clínica a este fenômeno. Kafka
se serviu de sua sensibilidade às ansiedades pessoais e sua ousadia de escritor
imaginativo par escrever essa obra literária ímpar.
Está incluído entre os escritores que melhor utilizaram a arte da escrita
para representar as diversas paixões, sofrimentos e condutas do homem. Sua obra
literária é resultado da sua existência sofrida.
É possível que tenha usado a arte literária para sobreviver
psiquicamente, de acordo com a regra geral de que o escritor escreve primeiro
para si próprio e depois para o leitor. Ao escrever A metamorfose, desnudou-se, talvez como nenhum outro escritor o fez
na história da literatura clássica universal.
Biografia de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883, onde viveu toda sua vida. Seu pai
era um abastado comerciante judeu, autoritário e conservador no trato da
família, que subestimava os dotes literários do filho. Kafka descreveu esse
conflituoso relacionamento com patética penetração no livro Carta ao Pai, uma coletânea de missivas
tornada célebre e que não chegou a ser entregue em vida ao pai.
Era introvertido e sentia-se um estranho em sua casa. A mãe era submissa
ao marido. Tinha três irmãs que tiveram destino trágico. Morreram nos campos de
extermínio nazista.
Kafka formou-se em Direito, em 1906. Trabalhou por oito anos, como
advogado em uma companhia de seguros, sem se identificar com a natureza da
profissão. Queria e precisava de todo o tempo disponível para escrever e
ler.
Em 1914, Kafka teve uma depressão, devido seus conflitos intrapsíquicos:
a origem judia, às incompatibilidades familiares e às descontinuidades
amorosas.
Esteve noivo duas vezes de Felice Bauer. Não se casou com ela, nem com
outras mulheres que marcaram sua vida, como a escritora Milena Jesenká-Pollak — que
foi sua amante e com a qual manteve uma correspondência reunida em Cartas a Milena —, e Dora Dyamant, uma
jovem que conheceu no final da vida.
Também o início da Primeira Grande Guerra teve efeito negativo sobre ele.
Por ter profetizado a história do povo judeu diante do nazismo, seus livros
foram proibidos de comercialização pelo Estado instalado, alguns sendo queimados.
Janouch conviveu com Kafka nos anos finais de sua vida e no livro Conversas com Kafka, mostra como o
escritor refletia sabiamente sobre a existência humana. Há citações de
reflexões suas como: “A existência humana é demasiado penosa, por isto queremos
nos livrar dela, ao menos pela imaginação”, ou “O mal sempre volta ao seu ponto
de partida”, e ainda,
O caminho que leva da impressão ao conhecimento é
quase sempre longo e difícil, e muitas pessoas não passam de mesquinhos
viajantes. É preciso perdoar-lhes quando vêm titubeando chocar-se contra nós
como em uma parede (Janouch, 1985).
Acometido pela tuberculose, Kafka teve hemoptise em 1917. Viveu mais sete
anos, sendo os dois últimos, internado. Faleceu com 36 anos de idade, sentindo-se
fracassado como homem e escritor.
Kokis, mais recentemente, referiu-se assim a ele: “Kafka foi um homem de
seu tempo e por tê-lo sido de modo radical, possuindo uma consciência
traumatizada, sucumbiu, não sem antes bradar sua angústia e horror ante o seu
mundo”.
A obra literária
Monumento em Praga -
Ilustrativo da relação de Kafka com o pai
A
obra literária de Kafka, escrita em alemão, teve início em 1909, com a
publicação de Descrição de um Combate. Publicou
O processo, Carta ao Pai, O castelo,
América, Diário, Na Colônia Penal, A metamorfose, A sentença, Um médico rural. Escreveu até o final
de sua vida, em 1923, o último livro Um
artista da fome.
Poucos foram editados em
vida. Antes de morrer, Kafka obrigou o amigo Max Brod prometer-lhe que queimaria
suas obras não publicadas. Felizmente, para a literatura universal, Brod faltou-lhe
com a palavra.
Seus
escritos retratam as angústias do homem de seu tempo. Denunciam os aspectos dominadores
e brutais presente nas relações das pessoas por parte da autoridade. Espelhado no
livro O processo, comparável em
grandeza literária a Crime e Castigo
de Dostoievski, ambos com temática parecida, mostraram a fraqueza do ser humano
diante do poder, evidenciando a dor e o sofrimento humano. Tudo com tal
requinte, que até as deformações, de descrição difícil, são precisas, como em A metamorfose.
Sua
obra, tida por alguns como um conjunto de sonhos, antes interpretada como
simples delírios de uma mente doentia, deve ser vista como reflexo de uma
realidade pessoal.
Segundo
Kokis
“Sua colocação é
responsável por toda uma nova concepção de literatura dominante em nosso tempo
e desligada dos antigos cânones do naturalismo descritivo, que Kafka abate
mortalmente. O homem de seu tempo não é homem estabilizado e reificado no
século XIX, mas sim um ser em tensão face ao desenvolvimento avassalador da
tecnologia e dos instrumentos de opressão e alienação do capitalismo em crise....
É um homem que luta engajado em situações-limites, ao mesmo tempo universal e
concreto... Depois de Kafka, a forma e o conteúdo da literatura autêntica
modificam-se fundamentalmente. Dá origem a uma nova concepção do homem,
personagem enfocado concretamente, e exige também uma nova concepção do homem
leitor, que penetra na obra debatendo-se necessariamente consigo mesmo, ao
contrário da aceitação ingênua e habitual do realismo descritivo ou narrativo
anterior... Agora, na luta, que é inadiável, parece impotente e mortal contra
aquela parede dos valores burgueses, que como um animal, redobra as forças
quando percebe a morte”.
Kafka
não conseguiu atingir prestígio como escritor em vida, apesar da originalidade
e da excelência das obras. Muitos o reduziram àquele que falava do homem que
virou inseto.
Sobre A metamorfose
Kafka terminou de escrever A metamorfose
em 1912. Foi publicado em 1915. Narra a história de Gregor Samsa, um jovem
caixeiro-viajante, que vivia com sua família (pai, mãe e uma irmã) e a mantinha
financeiramente. Acordou certa manhã, como barata gigante com dimensão de um
ser humano. Sentiu dificuldades para aprontar e pegar o trem que o levaria ao local
de trabalho. A fala modificada, os movimentos motores lentificados e a mente
entorpecida. Como Gregor não apareceu no serviço, o chefe foi à sua casa para
avaliar a razão da ausência. Obrigado a mostrar-se ao chefe e aos familiares, a
apresentação causou repugnância geral. É enxotado de volta ao seu quarto pelo
pai, que o atingiu nas costas com uma maçã, causando-lhe uma infecção grave. A
doença, outros maus tratos e o sofrimento levaram Gregor a optar pela morte.
O
estilo literário de Kafka adentra a modernidade. Emprega uma abordagem
impregnada de horror. A narrativa arrastada, monótona, asquerosa, nauseante e
aflitiva, reflete sua essência impregnada da angústia rouca, que permeia a narrativa,
e beira o cansaço e o desinteresse pela vida. Reflete o tédio vivenciado pelo
personagem-autor em relação ao humano e do próprio mundo em relação a seu
verdadeiro Ser. Gregor é recusado, refletido em sua horrível aparência de
barata, rejeitada pelo consenso comum. Kafka usa um método alegórico que imita
a linguagem onírica, mantendo uma analogia com situações reais, entulhadas no
curso da vida. A escrita é dotada da coragem para revelar em detalhes aquilo que
o ser humano deseja negar sempre: a possibilidade da descontinuidade da sua
existência.
Para
muitos críticos literários esse texto de Kafka pode ser considerado ficcionista.
A narrativa, porém, insiste nas premissas da arte, que inclui o insólito, o
incognoscível, o absurdo, o patético, o fantasmagórico e o real.
A metamorfose de Franz Kafka
tocou e continua a tocar em questões cruciais da luta existencial do ser humano
para continuar existindo. Don Quijote de La
Mancha, de Cervantes, escrito anteriormente, não seria mais um relato
comovente e tragicômico dessa luta?
Para Kokis:
A metamorfose
talvez seja a obra — excetuando a Carta
ao Pai — que é mais um documento bibliográfico que mais profunda e
acessivelmente revela a problemática kafkiana... É um relato autêntico das
impressões sentidas por Kafka em relação aos seus e em sua casa, onde era visto
com alguma coisa de reprovável e desprezível, física, moral e socialmente...
Acima de tudo, trata-se de uma profunda experiência humana pessoal narrada
friamente, além de interessante exposição dos costumes e do comportamento de
sua sociedade... Inicialmente, após acordar, a posição de Gregor é uma posição
indefesa, de costas face ao mundo, oferecendo seu frágil abdome de inseto como
presa fácil.
Fundamentação teórica
Publiquei vários trabalhos sobre o trauma (2002c, 2005, 2006) segundo o
conceito de trauma, segundo o DMV–IV (1994). É definido como um evento que
produz em sua vítima uma noção de morte. A articulação das contribuições da
Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurobiologia e a Psicologia Experimental pode
acrescentar aspectos teóricos importantes a esse conceito psiquiátrico.
Sua vítima apresenta como traço geral uma crescente insuficiência para a
vida familiar, social e profissional e recebe críticas hostis do meio ambiente,
que incorpora e passa a fazer a si por meio de seu superego.
Apresenta respostas biológicas e psíquicas como uma Desconexão entre a parte cortical do cérebro — mais especificamente o lobo pré-frontal, onde está a sede da
cognição — e o hipotálamo. Este
contém, a amídala cerebral, de onde emanam as respostas biológicas ao trauma, aprendidas
filogeneticamente, portanto reflexas e inatas. Quando a vítima de um trauma
consegue racionaliza-lo, já apresentou um comportamento de imobilidade, ou de
luta ou de fuga, dependendo do contexto, da iminência do perigo e do
aprendizado, armazenado na memória procedural. O corpo chega antes que a mente.
A vítima do trauma ausenta-se de si mesma. Fica mais comandada por essa memória,
voltada para manter a sobrevivência.
Descrevi (2005) o Conceito de Desconexão,
assim resumido: a primeira matriz psíquica remonta ao período fetal, matriz
autista-contígua (Ogden, 1989b), no qual a noção de estar existindo é dada pela regularidade de ritmo e intensidade das
experiências sensoriais, relacionadas às funções vitais ordenadas pelo Sistema
Nervoso Autônomo, por meio da amídala cerebral. Ainda nesse período, com o
progresso dos processos de maturação, o feto é capaz de produzir intuitivamente
em si mesmo experiências sensoriais (Tustin, 1990) com os dedos, a língua, a
saliva, as fezes e a urina sobre a pele e as mucosas bucal, intestinal e
uretral. Têm função autoapaziguadora em situações acompanhadas de sensação de
morte, tais como traumas físicos, enfermidades, estados de toxicidade, estados
de baixa oxigenação e outras. Esse mecanismo persiste nas etapas sucessivas do
desenvolvimento, como assistimos no bruxismo, na diurese noturna, nos estados
de sudorese intensa e mesmo em atos impensados, como prensar as chaves do carro
nas mãos ou as contas de um terço com os dedos.
As experiências sensoriais são registradas pela incipiente memória de
procedimento e inicia o desenvolvimento da noção de como sou e onde estou. Esta
seria um ego biológico, pré-histórico, pré-simbólico e ano-objetal. No período
fetal não há um sujeito interpretante devido a pouca maturação das estruturas
corticais do Sistema Nervoso Central. Tudo tem semelhança com a vida animal.
Tudo é inato, reflexo e autônomo. Não existe "uma cabeça para pensar".
O Conceito de Desconexão contém a hipótese de que o homem após um
trauma com consciência consistente de morte, conforme conceituado pelo DSM-IV,
se autoapazigua com o registro das experiências sensoriais e busca a sobrevivência,
retraindo-se para o estado inicial autistico da homeostase. Aí, permanece em
suspensão animada, com um metabolismo limitado à absorção e gasto mínimo de
oxigênio, conforme experiências recentes de Eric et al (2005) com órgãos para transplantes. Utilizam esse
princípio para prolongar a vida do órgão a ser transplantado após a morte do
doador.
Além de recompor a sensação de continuar
existindo, as experiências sensoriais autogeradas promovem um sentimento de
coesão física e psíquica. É possível detectar, em exames de ultrassonografia fetal,
os fetos tocando com as mãos e os dedos os órgãos sexuais, a boca e as orelhas. Os adultos
realizam as mesmas ações sintomáticas mencionadas.
De forma paradoxal, a Desconexão das
estruturas cognitivas corticais torna a vítima do trauma mais insuficiente para
avaliar e responder as crescentes demandas de sua realidade interna e externa, e
necessitam de um esforço físico e psíquico maior, exatamente quando está mais fragilizada.
Gera-se um estado de estresse (Selye, 1936) que vai exaurindo suas forças, e acaba
por desistir da vida.
Gregor, o personagem kafkiano, é portador desse transtorno. Kafka
demonstra a existência de Gregor vivendo como um animal, mas pensando como um
homem, elemento característico da Desconexão.
Alguns pacientes relatam textualmente: "sinto-me uma barata".
A metamorfose
de Kafka e o Conceito de Desconexão
Na adolescência, tentei ler A metamorfose.
A leitura foi abandonada por ser sentida como confusa, cansativa e
desconcertante. Mas o exemplar foi guardado e, certamente, não por acaso,
retomado para leitura de férias, entre muitas opções de escolha em anos
recentes. Havia algo de comum entre o livro, desde logo pelo título e o que
vinha descrevendo como Desconexão.
Pude constatar a
riqueza da descrição dos detalhes de A metamorfose
para ilustrar e enriquecer seu Conceito
de Desconexão. De modo semelhante, o equipava para realizar a análise do
livro, até então, feita de forma fragmentada e insuficiente com os referenciais
teóricos clássicos da Psicanálise, da Psicologia e da Sociologia. Desse lugar surgiu
este trabalho.
A compreensão de A metamorfose
A narração, segundo tradução de Cajado (1948), começa com a exposição da transmutação
do personagem, Gregor Samsa, em um inseto do seu tamanho, dotado de muitas
pernas e couraça, uma barata. Seu pensamento, no entanto, evolui como de um ser
humano. Tal alteração manifesta-se após uma noite de sonhos intranquilos. Ele
acordou e não se reconheceu mais: "Que me aconteceu? — pensou ele".
Metamorfose é uma palavra grega usada, especialmente, para descrever a
transformação da crisálida em borboleta. Nessa narrativa de Kafka, a metáfora é
usada para descrever o oposto: uma mudança para o estado de desvitalização.
Todos nós passamos por metamorfoses em nossas vidas, melhores ou piores,
discretas ou acentuadas. Ocorrem, às vezes, da noite para o dia. Dormimos mal e
acordamos sentindo-nos bem ou vice-versa.
A metamorfose de Gregor Samsa revela a existência de um lado animal do
homem, com o qual mantemos estreita relação de convivência e repúdio ao longo
do dia e da noite. Debatemo-nos entre nossas respostas fisiológicas reflexas e
instintivas — que nos atraem, porque nos vitalizam e preparam para o perigo —,
e aquelas ditadas pela cognição, que nos diferenciam dos animais. Esta nossa luta
interior é representada nas várias produções do homem civilizado. Por exemplo, nas
touradas, em que um longo ritual é obedecido para ver o toureiro sobrepujar o
touro, olho no olho; e nos competitivos rodeios, para testemunhar quem domina
quem, se o animal ou o homem. Na mitologia grega, está representada pela lenda
da esfinge de Tebas, metade homem e metade animal, e pela medusa, cujos cabelos
da cabeça são serpentes. Também em sonhos com animais de formas normais ou
esdrúxulas.
Essas respostas originam-se da posição psíquica fetal autista-contígua
puramente sensorial, diferente das outras do pós-parto, que já contém um sujeito
interpretante, dotado de funções cognitivas: a posição esquizoparanoide e a posição
depressiva.
Gregor sentia-se contrariado com o serviço de caixeiro-viajante —
executado com o único propósito de sustentar a família —, pela rigidez do chefe,
e pelo fato de seu pai, mãe e irmã não reconhecerem seu estado de contínuo
estresse.
É muito significativo o relato da mãe de Gregor ao seu patrão,
referindo-se aos dias que antecederam a metamorfose. Ela lhe conta que Gregor
passava noites seguidas na sala, fazendo coleção de fotografias de mulheres e
havia escolhido uma, cujo pescoço estava envolto por peles que lhe caíam sobre
o colo e os braços, que havia mandado colocar em uma moldura e pendurado em seu
quarto. Diz-lhe ainda da ocorrência de sonhos agitados.
Valorizei a existência desse quadro na narrativa, pelos estudos sobre a
segunda pele (Bick, 1968, 1986). Em trabalho de 2002c sobre esses estudos e baseado
em minha experiência clínica, destaco a existência de arranjos de natureza
psíquica e orgânica, que denominou de "remendos" ou "costuras",
para estancar o escoamento de conhecimento psíquico, resultante de uma ferida
da superfície sensorial, principalmente a pele, por um trauma físico ou
psíquico (Rosenfeld, 1980). Como ilustração, relata o caso clínico de um
paciente psicótico e o estudo da fantasia do homem-aranha em nossas vidas.
A pele, envolvendo parte do corpo da mulher na fotografia, é um desses "remendos",
o que já indicava que Gregor não estava bem. Kafka volta a mencioná-lo outras
vezes durante a narrativa. Provavelmente, os sonhos intranquilos resultavam de
agonias indizíveis, relacionadas a um estado que tinha o cheiro da morte e da
loucura.
Kafka escreve[1]:
Pendurado por cima da mesa... havia um retrato que ele
recortara recentemente de uma revista ilustrada e enquadrara numa bonita
moldura dourada. A fotografia mostrava uma dama com um toucado e estola de pele
sentada em posição ereta, tendo ao colo um imenso regalo também de pele, dentro
do qual seus braços desapareciam completamente.
Após citar esse arranjo, Kafka prossegue, descrevendo os sintomas consequentes da metamorfose ocorrida. Primeiro, uma exacerbação da experiência
sensorial ao estímulo físico auditivo. A exacerbação, que pode ser tátil, ou visual, ou olfativa, ou sinestésica, atesta a ausência da segunda pele
como elemento protetor.
Gregor queixa:
Mas como era possível
dormir com aquele ruído do relógio nos ouvidos? (...) Sua maior preocupação era
o barulhão que faria ao cair, e que provavelmente causaria uma certa ansiedade,
se não terror, por trás daquelas portas.
Em segundo lugar, ocorre uma alteração do psiquismo. Trata-se de um
embotamento, caracterizado pela
lentidão do pensamento, da memória, do raciocínio, da orientação no tempo e no
espaço, do juízo crítico e outras funções cognitivas: "Gregor realmente
sentia-se bastante bem, exceto por uma espécie de entorpecimento".
Em terceiro lugar, ocorrem alterações ligadas às atividades motoras como
o andar, falar, comer, e outras:
Gregor teve um choque ao
ouvir sua própria voz respondendo a dela [da mãe], incontestavelmente era a
dele mesmo, mas idêntica a um horrível guincho trêmulo e proferido num meio
tom, que logo no primeiro momento permitia que as palavras fossem pronunciadas
de uma forma clara, mas logo em seguida elevavam-se repercutindo num eco que
anulava seu sentido, fazendo com que se duvidasse de tê-las ouvido
corretamente.
Descrevendo outras manifestações motoras, como a imobilidade e a
lentidão, Kafka continua:
Assim sendo procurou
primeiramente mover a parte superior, e cautelosamente movimentou a cabeça na
direção da beirada da cama. Aquilo foi difícil, e apesar do esforço para
respirar e o imenso volume de seu corpo, este finalmente acompanhou o movimento
de sua cabeça.
Na imobilidade o Ser permanece suspenso no mundo dos semivivos, onde fica
apaziguado e à espera do retorno do ambiente confiável. Sua fala fica
diferente, permanece mais na cama, o caminhar é lento e a sonolência
incontrolada.
A seguir, Kafka, como um bom
clínico, nos dá uma ideia melhor da situação traumática na qual Gregor vivia:
Se eu não tivesse que
sustentar esta situação — o emprego — por causa de meus pais há muito tempo que
teria pedido demissão, e dirigindo-me ao meu chefe, ter-lhe-ia dito o que penso
dele.
Seu descontentamento com o serviço estava relacionado à
natureza do trabalho e ao chefe autoritário, que veio à sua casa para saber a
razão da ausência. A mãe defende Gregor, pensando mais em si mesma, e nas consequências negativas da demissão do filho, do que na pessoa dele:
Ele não deve estar
passando bem — observou sua mãe ao visitante, enquanto seu pai continuava
falando través da porta. — Não deve estar bem, pode crer, meu senhor. Senão, o
que mais poderia tê-lo feito perder o trem! O rapaz só pensa no trabalho. Esse
moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Chego a ficar quase
irritada ao vê-lo sempre em casa à noite. Há oito dias que está aqui não tendo
saído em nenhuma delas.... Sua única distração consiste em molduras
decorativas... uma delas está pendurada em seu quarto e verá quão bonita ela é,
logo que ele abrir a porta... tenho certeza de que não está passando bem,
embora não veja motivo para que isto ocorresse esta manhã.
O exame desse trecho da narrativa permite destacar alguns elementos
responsáveis pela metamorfose de Gregor. Primeiro, a sensação de ser usado como
objeto de consumo por todos que o cercam. Segundo, a rigidez do chefe
denunciada pela vinda à sua casa e pela necessidade da mãe de justificar sua falta
ao trabalho. Ela temia-o como impiedoso. Soma-se aos dois, a sua exigência
consigo mesmo. No início da narrativa Gregor não se sente bem ao acordar. Ainda
assim, tenta levantar-se a qualquer custo para não perder o trem. Como se verá
adiante, o pai é, também, bastante rigoroso.
Outro elemento patogênico importante é a incapacidade da mãe para compreender
as demandas de Gregor por auxílio. Evidencia-se que percebeu que ele não estava bem nesta afirmativa: "Durante duas ou três noites dedicou-se a recortar figuras
para enquadrá-las, uma delas está em seu quarto...". Não valorizou sua percepção como um pedido de auxílio. Não se
comportou como a mãe suficientemente boa
de Winnicott (1962), que atende às demandas do bebê e,
por vezes, chega antes dele, ensejando-lhe a experiência de ilusão, fundamental para o fortalecimento de seu sentimento
de continuar existindo. O bebê sem
essa mãe boa, quando ameaçado, tende para os movimentos autistas. O recolhimento
de Gregor ao quarto obedece a essa tendência.
Na mesma linha, pode-se entender seu desejo de quietude ou o entorpecimento
psíquico: ele queria apenas sobreviver. Essas ações foram denominadas por Ogden de movimentos
autistas:
O isolamento do tipo
autista-contíguo implica em algum grau o ato da substituição da mãe como
ambiente por um ambiente sensorial autogerado. Estou propondo que, desde os
primórdios da vida psicológica (e ao longo de toda a vida), existe uma forma de
experiência à qual a mãe, na condição de matriz psicológica, é substituída por
uma matriz de sensação autônoma.
Ilustro com o caso de um paciente psicótico em tratamento comigo. Ele deixa
o quarto, apenas, para fazer suas necessidades fisiológicas e ir às sessões de
análise. Lá de dentro, sabe todo o movimento da casa, pelas chamadas da campainha, do telefone ou do bater de portas.
Em tudo, é econômico, vivendo com o
mínimo necessário. Apresenta inúmeras escoriações na pele, por coçá-la
incessantemente, do mesmo modo como rói as unhas. Esse paciente roça sua pele
em busca da produção da experiência sensorial autogerada para se sentir existindo, que substitui a sua
mãe boa.
O isolamento de Gregor está justificado, objetivamente, pelas deformações
que a metamorfose lhe produziu. Existe uma razão estética para seu isolamento.
No entanto, a razão principal é a busca da sobrevivência pelo afastamento do
ambiente hostil.
Kafka prossegue a narrativa, retomando a ênfase da rigidez do chefe e
agora, demonstrando a do pai. O chefe: "Os
senhores entenderam uma só palavra do que ele [Gregor] falou? Era uma voz de
animal. Certamente, está querendo fazer-nos de idiotas". O pai: "Anna! Anna! — chamou o pai à
porta da cozinha e batendo palmas. — Vá buscar um serralheiro, imediatamente”.
Diante dessas ameaças Gregor sente-se obrigado a se fazer ouvido e visto
como lhe impunha o pai, categoricamente, nesse momento. Porém, sua situação é
de aflitiva indecisão. O que seria mais recomendável? Sair e correr o risco de
produzir asco e repugnação naquelas pessoas ou indispor-se mais com o chefe e o
pai, pelo silêncio e afastamento? Gregor resolve ousar. "Ouçam — disse o
chefe por trás da porta — ele está virando a chave... Um estalido mais alto
demonstrou, finalmente, que a fechadura havia cedido". Abre-se a porta: a
visão de Gregor foi impactante e despertou sentimento de horror no chefe e
raiva no pai[2]:
Seu pai cerrou o punho
com uma expressão feroz, como se pretendesse descarregá-lo sobre Gregor para
fazê-lo voltar para o quarto... enxotou-o cruelmente para trás, perseguindo-o
com assobios e gritando xô, xô, parecendo um selvagem... foi quando seu pai o
empurrou por detrás com toda força... Gregor saiu voando para dentro do quarto,
sangrando abundantemente. Com a bengala o pai empurrou a porta violentamente
logo atrás dele, e afinal o silêncio voltou a reinar.
O pai estava desapontado com ele. Conforme
Kafka, "Seus pais não podiam entender aquilo; tinham-se convencido durante
o transcorrer dos anos que o futuro de Gregor estava garantido na firma para
toda a vida".
Ocorria um estado de incompreensão máxima. É, realmente, como acontece no
mundo real. Este Ser é rejeitado como incapaz, preguiçoso, manipulador,
dissimulado e desprovido de força de vontade. Mal sabem aqueles que julgam como
está necessitado do contato côncavo das peles, dos toques macios e da palavra
que sustenta. Desconectado, encontra-se em um estado de desamparo e
insuficiência. Está recolhido em si mesmo. Sartre
(1943) mostra uma aguda sensibilidade da natureza do Ser, quando põe em
palavras um pensamento rebuscado de beleza e realidade, no qual define o mais
primitivo isolamento pessoal: “Resta saber em que região delicada e esquisita
do Ser encontraremos o Ser que é seu próprio Nada”. Acrescenta-se que a
sensação é seu próprio Tudo.
Em seguida, Kafka menciona outro sintoma frequente da Desconexão. O Ser passa a comer mais, conduzindo-se
para a Bulimia ou passa a comer menos e se move em direção a Anorexia Nervosa.
Isso é resultado da busca da baixa estimulação ou da hiperestimulação. Na
primeira, vive com o mínimo, só para garantir a consciência do sentimento de
que está vivo. Na segunda, busca desesperadamente sentir-se vivo, sem os riscos
da descontinuidade.
Dias comia bem, a ponto
que a lauta refeição inchara seu corpo de tal forma que se sentia comprimido
por baixo do assento do sofá — lugar onde se escondia — mal podendo respirar —
e quando não comia, o que vinha ocorrendo mais freqüentemente, ela (a irmã)
murmurava quase com tristeza: deixou tudo outra vez.
Nessa altura, Kafka mergulha um pouco na história pessoal de Gregor. Há
cinco anos, o pai
enfrentara um colapso financeiro.
Naquela época o único desejo de
Gregor era fazer o máximo para auxiliar a família a esquecer a catástrofe que
sobre ela se abatera, deixando-a num estado de completo desespero... tornara-se
um viajante comercial em vez de optar por um cargo modesto de funcionário de
escritório, tendo evidentemente muito mais chance de ganhar dinheiro... Eles (a
família) simplesmente haviam-se habituado àquilo — tanto a família quanto ele
mesmo — sendo o dinheiro recebido com gratidão e oferecido com satisfação, sem,
contudo haver nenhuma exibição de um sentimento mais efusivo... Logo de início
[após a metamorfose], toda vez que ouvia mencionarem a necessidade de ganhar
dinheiro, Gregor abandonava seu lugar por trás da porta, precipitando-se para
seu cantinho fresco por baixo do sofá, sentindo-se agitado pela vergonha e
tristeza.
A incompreensão da mãe, a rigidez do próprio Gregor, associada ao rigor do
pai e à do chefe, agravavam a Desconexão.
Gregor sentia-se cada vez mais desvitalizado, desvalorizado, censurável e repugnante, pelo estado seguido de estresse.
Passados os primeiros quinze
dias, aconteceram tentativas da irmã e da mãe de ajudá-lo. Resolveram
esvaziar-lhe o quarto, retirando a cômoda e a escrivaninha, para facilitar-lhe
os movimentos. Os resultados foram lamentáveis. A escrivaninha e a cômoda
davam-lhe os contornos da sua identidade e eram-lhe, afetivamente, muito
significativas. Também o barulho, devido à sensibilidade sensorial aumentada, se
constituiu em uma tortura.
... e o raspar das peças
no assoalho tinham-no afetado de tal forma, como se repentinamente à sua volta
houvesse ocorrido uma agitação tremenda, e por mais que encolhesse a cabeça e
as patas, agachando-se completamente, no chão, teve que confessar intimamente
que não aguentaria aquilo tudo por muito tempo.
Desesperado, Gregor se esforça para agarrar o quadro da dama pendurado na
parede. Abraça-o, mantendo-se colado ao vidro e cobrindo-o com seu corpo
enorme. No ato, insinua um desejo de que a dama do quadro faça o mesmo com ele,
envolvendo-o com um abraço de peles, para
lhe proteger da crescente ameaça de se desfazer.
Gregor está transtornado e por isso não se incomoda mais com os riscos de
perder a mãe, caso ela o surpreenda agarrado ao quadro fixado na parede, em seu
estado de metamorfose. A irmã percebe a situação e tenta afastar o olhar de sua
mãe. Tudo é em vão. Ela o vê e grita: "— Oh, Deus! Meu Deus! — caindo
desmaiada no sofá completamente imóvel". Nada ia bem para Gregor. Seu pai
chega da rua e encontra a esposa desmaiada: "— Tal qual estava esperando —
disse ele. — Já tinha avisado, mas vocês mulheres nunca ouvem nada".
Uma pausa e Kakfa refere-se a Gregor lembrando-se do pai no passado:
Aquele que para falar a
verdade, nem podia levantar-se limitando a saudá-lo erguendo os braços, e que
nas raras ocasiões em que saía com a família — um ou dois domingos por ano e
nos feriados — caminhava entre Gregor e a mãe os quais embora andassem devagar,
ele ainda o fazia mais lentamente, enfiado no velho sobretudo, arrastando com
dificuldade os pés para frente auxiliado pela bengala de cabo curvo.
Constata-se que o pai de Gregor passou por uma Desconexão e não por uma depressão,
identificada pela lentidão de seus passos, o agasalho pesado, e o isolamento. Foi decorrente do
fracasso financeiro, que comprometeu
a carreira dos filhos e resultou em
uma situação de autoacusação impiedosa, que
explica a aversão dele ao filho,
ao vê-lo em estado semelhante, espelhando-o. O pai de Gregor condena-o por
aquilo que ele mesmo não conseguiu evitar, ou seja, entregar-se aos movimentos
autistas. Sua angústia não está relacionada com o Complexo de Édipo e a ameaça de castração ou com o
sentimento de perda. A obra de Kafka refere-se, especificamente, à
sobrevivência e à angústia frente à ameaça de se desfazer diante do trauma.
Prosseguindo, ao ver a esposa desmaiada, o pai de Gregor sente-se
justificado para expressar sua ira.
... avançou para Gregor
com uma expressão cruel.... Assim correu à frente do pai, parando quando ele
parava e movendo-se mais depressa quando ele fazia qualquer movimento... de
repente, sentiu qualquer coisa atirada sem muita força cair por trás dele,
rolando para frente. Era uma maçã, e imediatamente recebeu uma outra. — Uma
outra, porém, jogada imediatamente com um impulso maior caiu sobre o lado
direito de sua costa afundando-se nela... Gregor sofrera um ferimento bastante
sério, deixando-o inutilizado mais de um mês — a maçã permanecera grudada em
seu corpo, tal qual uma recordação invisível, porquanto ninguém arriscara
tirá-la dali.
A irmã tenta interceder: ... "[ Grete] alcançando-o [o pai],
abraçando-o e unindo-se a ele completamente, com as mãos à volta do pescoço
intercedendo pela vida do irmão".
Daí para frente a mãe e a irmã lhe dedicam só o cuidado indispensável. Choravam
pelo seu destino. Para complicar mais a situação de Gregor, a família passou a
vê-lo como um estorvo para os planos de mudança para uma moradia menor, onde
teriam menos gastos materiais. Grete, já farta, conseguiu um trabalho. Os cuidados
com Gregor foram delegados para a faxineira, que a substituiu. Essa não conseguia
esperar a hora para atirar uma cadeira nas costas dele, tanto desejava o seu
fim. Seus pais decidem alugar parte do apartamento para três senhores. O
movimento na casa aumentou e diminuiu o espaço físico, dificultando a
existência de Gregor.
Um dia, algo diferente aconteceu. Grete resolveu tocar seu violino.
Juntaram-se todos na sala. Gregor foi atraído pela música e
... arriscou mover-se um
pouco para frente, ficando com a cabeça dentro da sala.... Para falar a
verdade, ninguém o percebeu.... Com o rosto inclinado para um lado, seu olhar
triste e concentrado acompanhava as notas da música.... Seria realmente um
animal, e mesmo assim, a música exercia um tal efeito sobre ele? Tinha a
impressão de que um caminho se abrira à sua frente, levando-o até aquele
alimento pelo qual tanto almejava. Decidira que continuaria avançando até
alcançar sua irmã, e puxaria sua saia a fim de fazê-la que deveria ir até seu
quarto com o violino, uma vez que naquela sala ninguém apreciava tanto quanto
ele o que estava executando... pela primeira vez sentiu que sua figura
assustadora ser-lhe-ia útil.
A mudança momentânea de Gregor exemplifica a exposição de Tustin (1990)
sobre os objetos autistas e as formas autistas, utilizados pelo bebê e pelo
adulto para lhes proporcionar uma experiência sensorial apaziguadora. São
obtidas por toques rítmicos duros ou macios. Podem ser auditivas, visuais,
táteis, olfativas ou gustativas. A boa música pode ser considerada uma forma
autista, tanto o encontro das bochechas do bebê com a mama da mãe ou o contato
agradável da água do banho com a pele do corpo. Como escreveu Kafka, Gregor
sentiu-se alimentado, uma pausa para o seu sofrimento.
A narrativa vai mostrando o agravamento da situação. Um dos inquilinos,
ao avistar sua figura horrível disse:
— Devo comunicar-lhes...
que devido às condições desagradáveis que prevalecem nesta casa e nesta família
— e cuspiu no chão para enfatizar sua declaração lacônica — retirar-nos-emos
imediatamente.
Gregor sentiu a aproximação do final: "Receava, com certo grau de
certeza, que a qualquer momento aquela tensão geral desabasse sobre ele num
ataque combinado".
O finalmente veio de Grete, que mais o
compreendera:
— Papai, ele tem que ir
embora — gritou ela — é a única solução! O senhor simplesmente tem de abdicar
da idéia de que aquilo é Gregor. O fato de termos acreditado nisso tanto tempo,
é que originou todo este transtorno. Como pode aquilo ser ele? Se fosse, há
muito que teria compreendido que os seres humanos não podem viver com um animal
desta espécie, e teria partido de livre e espontânea vontade. Então não
teríamos nenhum irmão, mas seriamos capazes de continuar a viver respeitando
sua lembrança. Mas assim como é, este animal persegue-nos, enxota nossos
inquilinos, e é evidente que deseja todo o apartamento para ele e permitiria
até mesmo que fôssemos dormir na sarjeta.
Fica claro que agora só a incompreensão une a família a Gregor. Já o
consideram como malvado, intencionalmente interessado em fazer-lhes a desgraça.
De perseguido, passa a perseguidor e vai precisar viver como foragido. Até
quando? Gregor sente suas forças físicas minadas. Conseguirá?
A narrativa, afinal, ganha intensidade trágica:
Logo depois descobriu que
era incapaz de mover um só membro. Aquilo não o surpreendeu, antes não lhe
parecia normal que tivesse realmente podido movimentar suas perninhas tão
fracas. De qualquer modo se sentiu relativamente bem. Verdade é que seu corpo
todo doía, mas teve a impressão que a dor ia diminuindo gradativamente e
acabaria passando. A maçã apodrecera em suas costas e a região inflamada em
volta, que estava coberta, já mal o incomodava.
Gregor permanecia na imobilidade total. Tem o fim
inevitável. Não tolerando mais a hostilidade do meio e o sofrimento, se mata:
A decisão relativa ao seu
desaparecimento, ele já a havia tomado muito mais energicamente que a irmã — se
isto fosse possível.... Os primeiros clarões estendendo-se sobre o mundo que
ficava do outro lado da janela invadiram uma vez mais suas faculdades de
percepção. E, então de livre e espontânea vontade, afundou a cabeça no chão e
de suas narinas exalou-se um último suspiro débil e trêmulo.
Considerações Finais
A metamorfose é uma obra-prima
da literatura universal. Como outras, encerra elementos vitais do existir
humano: a angústia de morte, a sobrevivência e a loucura.
Enquanto os leitores torcem pelo fim da metamorfose de Gregor, o pai e a
mãe a desejavam para que ele continuasse mantendo o status quo da família. A ordem crescente de indisposição mútua
conduziu a uma situação irreversível e à decisão, pelo próprio Gregor, de
morrer.
Kafka manteve-se vivo, matando o personagem nessa provável catarse
literária. Indo além da imaginação, pensando pelo lado oposto, e usando a mesma
imagem de Kafka, é possível dizer que Gregor, com suas descontinuidades de vida,
precisou tornar-se um homem de muitas pernas e uma couraça dura, para fazer
frente aos golpes rudes da vida.
Talvez o homem atual, enfrentando toda sorte de violências a ameaçar-lhe
a sobrevivência, tenha de se desdobrar para não definhar como Gregor Samsa.
Kafka insere-se na plêiade de autores clássicos como o escritor do
inverossímil, do inacreditável e do absurdo. Ao contrário do que muitos
pensavam e continuam pensando, escreveu e descreveu, por meio de uma gigantesca
metáfora, a alma desertificada pela Desconexão.
Deve-se ressaltar que é válido continuar enfatizando a existência de uma
psicopatologia originada do período fetal do ser humano, uma psicopatologia
autistica, na qual as reações e respostas só podem estar voltadas para a
preservação do continuar existindo e do
autoapaziguamento diante da angústia de aniquilamento ou morte.
Referências
Bick, E. (1968). The
experience of the skin in early object relations. International Journal of Psychoanalysis, 49, 484-486.
Further considerations of the
function of the skin in early object relations. British Journal of Psychoterapy.
Vol. 2, 1986. p. 292-299.
Cajado,
S. (1948). A Metamorfose. São
Paulo: Nova Época Editorial.
DSM-IV (1994). Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders. Washington:
American Psychiatric
Association.
Eric, B. Mike, M. Mark. (2005). Hydrogen Sulfide induces a
Suspended Animation-like state in mice.
Science, 308, 518-525.
Janouch, G. (1985). Conversas com Kafka. São Paulo: Editora
Nova Fronteira.
Kafka, F. (1915). A Metamorfose. São Paulo: Companhia das
Letras.
Kokis, S. (1967). Franz Kafka e a interpretação da realidade.
Rio de Janeiro: Editora
Tempo
Brasileiro.
Ogden, T. (1989b). Sobre o
conceito de uma posição autista-contígua. Revista
Brasileira de Psicanálise, 30, 341-364.
(1994).
Os Sujeitos da Psicanálise.
Isolamento pessoal: o colapso da subjetividade e da intersubjetividade. São
Paulo: Casa do Psicólogo.
Rosenfeld, D. (2002c). O corpo em Psicanálise - Acerca
do esquema corporal.
Revista Brasileira
dePsicanálise, 17, 235-254.
Salim,
S. A. (2002c). Remendos para uma superfície
sensorial. Revista da Sociedade
Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, 4, 437-450.
(2005). Psicanálise hoje: a Desconexão
e o Transtorno do estresse pós-
traumático.
Revista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro, 1(1/2), 105-134.
(2006). O autismo, a
personalidade autista e o trauma. Revista
da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, 7 (1), 119-138.
Sartre,
J. P. (1943). Beeing and nothiness.
Trad. H. Barnes. Nova Iorque: Philosophical Library.
Selye, H. (1936). The general adaptation
syndrome and the diseases of adaptation.
Journal Clinical Endocrinology, 6, 117-122.
Tustin, F. (1990). Barreiras autistas em pacientes
psiconeuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Winnicott, D. W. (1962). O ambiente e os processos de maturação. A
integração do ego no desenvolvimento da criança. Porto Alegre: Artes Médicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário